VIRGINIE DESPENTES: VISÃO GUERREIRA DO FEMINISMO

Por Alexandre Staut

Não vejo esse período de quarentena de forma romântica, mas há fatos interessantes que devem ser colocados à mesa. O capitalismo, por exemplo, ruiu e está tentando se reinventar. Há também o ócio que, pelo menos para mim e diversos amigos, tem contribuído para colocar em dia a leitura e a pilha de livros que vai se juntando na cabeceira da cama. Logo que as restrições começaram, fiquei prostrado, sem conseguir concentração para ler um único capítulo de livro. Isso durou vinte dias, mais ou menos. Depois a leitura fluiu. Entre os livros da minha quarentena está a biografia do pintor russo naturalizado norte-americano Mark Rothko (1903-1970) escrita por Jacob Baal-Teshuva, que fez com que eu me apaixonasse ainda mais pela obra desse artista que podia saltar do drama ao zen numa única pintura. Li também dois originais do gaúcho Tailor Diniz, um dos melhores escritores policiais do Brasil. Entre eles, Só os diamantes são eternos, que vou publicar em breve por meus selo editorial Folhas de Relva Edições.

Outra surpresa foi conhecer mais profundamente o trabalho da Storytel, plataforma de audiolivros presente no Brasil há quase um ano com um catálogo ótimo. Eu mesmo participei de um projeto da casa, a série Vai ficar tudo bem, em que autores diversos foram convidados a criar histórias cheias de esperança para quem está em quarentena. Adorei e indico as criações de Martha Batalha, Edney Silvestre, Cristina Judar, Luize Valente, Mauricio Gomyde, Alessandro Thomé, entre outros colegas queridos.

Aproveitei o período também para mergulhar na obra da francesa Virginie Despentes. Conheci seu trabalho em 2001, na Mostra de Cinema de São Paulo, com o filme Baise Moi, Me fode em tradução livre. Escolhi-o ao ler na imprensa que o filme dirigido pela própria escritora tinha sido vaiado em Cannes, além de ser proibido em todo o território francês, quase trinta anos depois da última censura cinematográfica no país. Esses foram mais que bons motivos para querer assisti-lo.

O filme é baseado no livro de mesmo título escrito por Despentes aos 25 anos. É estrelado pelas atrizes pornôs Karen Bach e Raffaela Anderson. Para a direção, Despentes, que já trabalhou como prostituta, chamou mais uma atriz pornô, desta vez para a codireção, Coralie Trinh Thi. O filme é uma espécie de Telma e Louise cheio de violência explicita e sexo cru. As atrizes fazem o papel das heroínas Nadine e Manu, duas viciadas em drogas, e a história gira em torno de um estupro e de uma vingança.

Mais tarde, quando eu já morava na França, li o romance e a história fez mais sentido. Eu o li quando ainda aprendia francês e imaginei que o fato de já conhecer detalhes da trama pudesse me ajudar a entender a língua francesa. Acontece que o livro é cheio de gírias de jovens, que fui entender bem mais tarde. A leitura, no entanto, fez com que eu percebesse que as protagonistas queriam somente permanecer vivas a qualquer preço numa França machista. Isso tinha passado batido quando assisti ao filme. Para as duas, violência, humor, sexo e música eram meios apropriados para fugir de tudo o que mais as apavorava, a obediência, a submissão, o tédio e a abnegação. Um livro complexo e à frente de seu tempo, como a autora, ainda pouco traduzida no Brasil. O romance Baise moi permanece inédito por aqui.

No Brasil, até agora saiu Teoria King Kong (Editora N-1), livro que traz um ensaio autobiográfico em que Despentes narra em detalhes o estupro que sofreu aos 17 anos, junto a uma amiga, por três homens armados com rifles_ segundo a autora, o livro é “um manifesto de voz das mulheres feias, das caminhoneiras, das frígidas, das mal comidas, das incomíveis, das histéricas, das psicóticas, de todas as excluídas do mercado da boa moça”_ e, mais recentemente, A vida de Vernon Subutex – Volume I (Companhia das Letras), um dos livros que acabo de ler. O romance best-seller na França e finalista do Man Booker narra a história decadente do dono de uma loja de vinis que passa a viver nas ruas de Paris e se vê enredado numa trama de amantes, estrelas pornôs, fãs de rock, magnatas da indústria fono e cinematográfica, personagens muito bem desenhados pela autora. Vernon é um pouco como todos nós. Tenta sobreviver num mundo que quer engoli-lo. E todas as subtramas do livro são como essas que vemos no dia a dia, entre amigos e conhecidos. Na França a parte II da trilogia já foi publicada com sucesso.

Além dos livros citados, Despentes _ que acaba de deixar sua cadeira na badalada Academia Goncourt, na qual era membro convidada desde 2016 e de onde saiu para ter tempo de escrever, como disse em entrevistas _ já publicou muitos outros. Ao todo, são mais de dez. Desejo que, um dia, cheguem ao público nacional. É uma autora essencial da contemporaneidade. Ia dizer, num lapso, que ela é uma espécie de Houellebecq de saias, mas iria ofendê-la. Seus livros são infinitas vezes melhores que os de Houellebecq.

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Alexandre Staut é jornalista gastronômico, editor da Folhas de Relva Edições, e fundador do suplemento literário São Paulo Review of Books. Ele escreveu PARIS-BREST, publicado pela Companhia Editora Nacional, BANQUETE COM ÍNDIOS E OUTRAS HISTÓRIAS DA GASTRONOMIA BRASILEIRA e o romance O INCÊNDIO.