MISTÉRIOS DA GENTE

Trecho do romance policial inédito de Andrea Nunes, autora de A CORTE INFILTRADA (Buzz) e JOGO DE CENA (Cepe), encerra a semana na coluna Narrativas. Em sua estreia no blog VB&M, Andrea nos presenteia com um médico que, logo após palestrar para a elite da comunidade científica em centro de convenções na Itália, recebe misteriosa ameaça _ um coração numa caixa de presente. Esse é o prelúdio de uma trama, intitulada CORPO?, que une descobertas da tecnologia genética, segredos da arte renascentista, bastidores do tráfico de órgãos no Brasil e outros crimes contemporâneos, provocando reflexões inquietantes sobre o bem, o mal, a ética e o que nos define enquanto gente.

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Andrea Nunes

Quanto tempo dura a jornada de um ser humano partindo do céu em direção ao inferno?

Era a pergunta que Gustavo se fazia naquele momento. Poucos minutos atrás, estava nas nuvens, palestrando para a nata da comunidade científica mundial no mais moderno centro de convenções da Europa. Agora, encarava a caixa aberta a seus pés. Dentro dela, o bolinho rosado de carne úmida o encarava de volta, indiferente ao seu pânico.

Havia um coração de verdade dentro daquela caixa.

Gustavo sentiu um arrepio percorrer a espinha. Pela coloração, o “presente” fora extirpado de seu proprietário há pouco tempo. Pelo tamanho, poderia pertencer a uma criança. O terror que sentia só aumentava. Ele olhou para o frigobar, e a boca ficou seca. Ainda bem que Renato pedira para tirar todas as garrafinhas de bebida alcoólica dali.

Respirando fundo, tocou o coração com a ponta dos dedos e percebeu que ainda estava morno, o que o deixou consternado.

Tentando ordenar o pensamento, foi até a bancada do banheiro e encontrou um par de luvas cirúrgicas na bagagem de mão de Renato. Vestiu-as. Uma das vantagens de dividir quartos de hotel com cirurgiões, pensou. Retirou, então, o músculo de dentro da caixa e se obrigou a examiná-lo com olhos profissionais. Era um coração saudável, aparentemente. Mas havia algo estranho nele. Além de ser pequeno, havia discrepância na posição das veias e artérias. Foi então que a suspeita lhe ocorreu. Ele depositou o coração na caixa novamente, tirou as luvas e, numa rápida consulta a um atlas anatômico virtual, no seu próprio celular, obteve a confirmação de sua tese. Então pegou o telefone do quarto e ligou para a recepção.

– Alô. Aqui é o doutor Gustavo Barcelos Lira. Tenho uma entrevista coletiva no saguão do hotel para imprensa e congressistas, daqui a pouco. Mas antes de descer quero deixar registrado um fato inusitado: alguém entrou no meu quarto e deixou uma caixa contendo um coração de um cachorro e um bilhete sem identificação que pode ser entendido como ameaça. Exatamente. Não posso me atrasar para meu evento, as pessoas já devem estar me aguardando aí embaixo,  mas deixarei a caixa exatamente onde foi encontrada, e peço que a segurança do hotel seja acionada para tomar as medidas necessárias. Claro, compreendo as implicações burocráticas, e pretendo colaborar com tudo o que vocês precisarem. Na volta do evento conversaremos sobre isso. Obrigado.

Meia hora mais tarde, apesar de ter tomado as providências necessárias com relação ao terrível incidente, e ter conseguido sair do quarto  impecavelmente elegante em seu smoking, algo havia se quebrado no espírito de Gustavo. De  repente ele já não estava mais tão entusiasmado para dar a entrevista e socializar num coquetel com outros cientistas. O incidente lhe trouxera a amarga lembrança de todas as perseguições que cientistas sofreram por conta de ignorância e fanatismo ao longo da História.

Olhou pela parede envidraçada do elevador panorâmico em que acabara de entrar.  Apenas algumas quadras o separavam do local onde  fora queimado vivo o doutor e filósofo Giordano Bruno, por algumas heresias como defender o heliocentrismo e o conceito de universo infinito. Os séculos haviam passado, mas Gustavo tinha consciência de que a ignorância e o fanatismo são cíclicos, e voltam à tona mesmo quando pensamos já haver aprendido com os erros do passado.

Agora que as pessoas começavam a ter mais clareza do que ele tornava possível com seu projeto, não seria difícil que algumas mentes sectárias o acusassem de estar  profanando  o Criador ao imprimir órgãos humanos funcionais em laboratório. E não era impossível que algum desses perturbados achasse bonito lhe mandar um órgão de verdade, um coração, como lembrete que só Deus pode criar órgãos e colocar nos seres vivos.

Mas o ser humano pode tirá-los a qualquer tempo de cientistas arrogantes e colocar em lindas embalagens de papel de seda.

 Aquela conclusão o deixou inquieto. Naquele contexto, o coração dele bem poderia ser o próximo a ser extirpado. Será que era esse o recado do misterioso “y”?

“Em mim, a morte. Em ti, a minha vida.”.

Gustavo também tinha feito uma pesquisa sobre a frase remetida no envelope junto com a “encomenda”, e descobriu que a mesma fazia parte de um soneto escrito por Michelangelo. E ele nem sabia que o grande mestre que pintara a Capela Sistina também era poeta!

O cientista vinha tão absorto em seus pensamentos que demorou para perceber que um casal entrara discutindo no elevador.

Sentiu primeiro o cheiro bom do perfume da mulher, que se movimentava dentro do cubo de vidro como uma pequena leoa enjaulada encarando furiosa o seu acompanhante   de semblante enfastiado.

– Você me prometeu que iríamos hoje! – o dedo acusador que ergueu  colocou a mão dela bem no campo de visão de Gustavo, fazendo a aliança faiscar.

Noiva.

– Pietra, você sabe que esses lugares me dão sono…além do mais, hoje tem as semifinais do campeonato italiano de futebol bem no horário que você marcou esse troço! Escute: sei que custou uma pequena fortuna, então você poderia ir sem mim, e nosso prejuízo seria reduzido à metade. O que me diz?

Ela arregalou os olhos, e piscou de raiva. Gustavo então percebeu que os olhos eram de uma cor impressionante, violeta, como os de Liz Taylor, e boiavam dentro  de uma mata ciliar escura e espessa.

– Hamilton, você é mesmo tão babaca assim ou faz isso apenas para me deixar mais irritada? Não se trata do dinheiro gasto: este é um tour noturno particular na Capela Sistina, muito caro, sim, mas para ser feito a dois! Foi um passeio  recomendado pelo meu professor de Belas Artes, e nesse horário teremos a companhia apenas do guia. Daqui a pouco encosta uma limusine com flores e tapete vermelho, e você quer que eu entre sozinha? Porque quer ver um maldito jogo de futebol?

O rapaz encostado na parede oposta não se deu ao luxo sequer de parecer triste ou envergonhado. Com a parada do elevador no oitavo andar, tirou uma das mãos do bolso e deu um aperto na bochecha dela.

– Você combina muito mais com tapete vermelho do que eu. Já vou para o quarto que está quase na hora do jogo. Boa sorte na Capela Sistina. Faz umas selfies  com a  Mona Lisa e me manda, tá?

O noivo teve o bom senso de escapulir cronometradamente com o fechamento da porta de aço, não dando chance a Pietra para tentar impedir  sua saída. Mas ela não fez menção de que iria persegui-lo. Respirou fundo e empinou o queixo com toda a dignidade que conseguiu reunir. Gustavo , que a olhava com o canto do olho até então, se compadeceu da frustração da moça. O evento deveria ter custado, além de uma pequena fábula, algumas horas de produção em frente ao espelho. Ela estava deslumbrante num vestido longo vermelho, mas tentava a todo custo não chorar de raiva. O elevador chegou no térreo , e o olhar do cientista se deteve na expressão corajosa com que ela encarou  as portas de aço  que abriam . Ele então surpreendeu a si mesmo oferecendo a ela o seu  braço e um sorriso contido:

– A senhorita teria cinco minutos para um café? Antes da Mona Lisa, eu quero dizer.

 Pietra virou num sobressalto.

– Caramba, você é brasileiro? Desculpe por essa cena, eu e meu noivo não estamos conseguindo convergir nos interesses em nossa viagem. – ela percorreu os olhos analiticamente pelo corpo do cientista, literalmente dos pés à cabeça. – Por que está aqui sozinho  vestido de smoking? Por acaso também contratou um tour privativo caríssimo  e levou um bolo de sua noiva? Nesse caso acho que devo mesmo aceitar o convite para o café. Para brindarmos à nossa desgraça. Sim, porque agora estou me sentindo ridícula: estava contando os minutos para ver meu guia chegar aqui e me buscar para algo que sonhei e planejei tanto, e quando vai dando a hora de realizar meu sonho ,  acontece esse imprevisto e muda o cenário completamente – e já não estou  sentindo a mínima vontade de ser levada para o compromisso que tanto esperei. Ah, desculpe ir falando assim, mas já que você testemunhou toda essa pequena tragédia o mínimo que pode fazer é escutar meu desabafo.

O estranho alto de smoking alargou o sorriso, e ela sentiu como se vários caniços de anzol repuxassem o seu abdômem. Ele era extremamente atraente, com aquela graça  de homens que poderiam ter acabado de sair de uma guerra mas cultivavam a descontração de quem está jogando uma partida de tênis. A pele negra do pescoço contrastava de um modo esteticamente interessante com a alvura do colarinho, e os lábios bem desenhados traziam tanto a  sugestão de uma sensualidade inata quanto a promessa de algum perigo latente.