FÔLEGO NA POLÍTICA E NA LITERATURA

Luciana Villas-Boas

Imprevisível e eclético, Edney Silvestre acaba de finalizar uma peça de teatro, CAMINHANDO SOBRE ESCOMBROS, e está mergulhado na produção de um livro de contos dos quais a agência já leu três histórias belas e impactantes. Nunca adivinhamos com qual texto maravilhoso Edney vai nos surpreender _ sequer o gênero. Nesta Conversa Com (A)Gente, o autor e jornalista da imprensa e da TV, que começou a carreira de romancista com o premiado SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA (Record), comenta sobre política, literatura, arte, cultura, sobre o futuro do teatro, que é uma paixão desde a infância, sobre seu processo criativo e sua obra que abarca quatro romances, um volume de contos, seis peças, mais livros de crônicas e entrevistas. Com naturalidade mais que rodrigueana para se movimentar entre os gêneros literários, diz que contempla um dia escrever até poesia e livros para crianças. Sobre o momento difícil para as artes, acredita na resistência: “Resistir exige fôlego. Como estar debaixo d’água, sem poder subir, enquanto lá em cima a superfície está em chamas, tomada por combustível espalhado pela explosão de nosso barco. Os toscos venceram essa batalha e estão no poder. Aqui, nos Estados Unidos, na Hungria, nas Filipinas, e possivelmente ainda conseguirão muitas vitórias. Mas não podemos desistir. Não podemos nos deixar afogar”.

VB&M: Com uma naturalidade rodrigueana, você alterna o romance, o conto, o teatro, a crônica, a reportagem – o que não é comum em nossa literatura. O que o impele a um ou outro gênero? 

ES: Tenho paixão pela palavra. Acho que tudo começa aí. Um som emitido pela passagem de ar por uma parte esquisita de nossa fisiologia (e qual não é, pensando melhor?) se transforma em imagem contendo uma conceito, sólido de simbologia e significado. Fome. Casa. Céu. Sangue. Dor. Mãe. Pai. A cada palavra a gente associa ideias, memórias, desejos, invenções.  

A mim, quando brotam, as palavras chegam associadas a um formato à vontade delas, com voz específica, para serem partilhadas num conto, num romance, numa peça, numa reportagem.  

Um homem maduro sai de um café, numa cidade europeia, sentindo as moedas do troco no bolso, e é invadido pela lembrança do sangue de uma mulher em seus dedos, quando era um menino no Brasil. A narrativa desse homem se revela como um romance. Uma mulher chega de taxi a um hotel de luxo, trazendo duas malas; em uma leva seus livros favoritos, na outra a roupa para o salto. E ela conta, depois de dar boa noite a todos na plateia, por que está naquele palco, se despedindo de uma vida dolorosa demais para seu espírito delicado.  

Maggie nasceu como personagem de peça teatral, atravessou para um romance curto, cresceu e dominou novamente o espaço cênico do teatro em BOA NOITE A TODOS.  

Paulo circula pelos meandros de sua memória, com lembranças infiéis e inconfiáveis, como são as lembranças expostas em SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA. Os gêneros se impõem para mim conforme personagens e tramas vão emergindo, sem controle, até sem intenção.  

Agora há pouco, depois de terminar de escrever o conto Caminhando sobre escombros, que estará em meu livro novo, percebi que as duas personagens, um homem e uma mulher sem nome, não tinham se encerrado, ainda que o conto estivesse, definitivamente, este sim, encerrado. Então voltei às personagens, deixando que “falassem” o que ainda tinham a dizer. E os dois voltaram, naturalmente. E, desta vez sim, foram embora ao final da peça.  

VB&M: Como surgiu a paixão do teatro em sua vida?  

ES: Eu devia ter uns seis anos quando assisti a duas pessoas que se amavam muito, isso até uma criança podia entender, não conseguirem ficar juntas porque todos se opunham (ela era rica e ele pobre, ou vice versa), mas após a morte se reencontraram. A ressureição trazida pelo amor imorredouro. Isso era a peça “O céu uniu dois corações”, que assisti em Valença, apresentada sob a lona do Circo Theatro Universo, que percorria cidades do interior com seus números de trapezistas, equilibristas, domadores, palhaços e encenações. O que é o teatro, se não tudo isso reunido?  

Ali, debaixo da lona instalada em um terreno baldio na periferia da minha pequena cidade, hoje sei, me apaixonei por teatro. Essa paixão me tomou definitivamente quando vi como o teatro podia ser abrangente, abarcador, discutir temas atuais, ilimitadamente, ao assistir, na semana de estreia, completamente desarmado por não ter lido nem ouvido qualquer comentário, a “Angels in America”, a obra-prima, hoje um clássico, de Tony Kushner. Ali, em 1993, fui totalmente tomado pela paixão que já resultou nas peças CASA COMIGO, O BRILHO POR TRÁS DAS NUVENS, SARA EM SÃO PAULO (publicadas em áudio pela Storytel Brasil), RAINHAS (um musical com letras de Claudio Botelho), CAMINHANDO SOBRE ESCOMBROS.  

Quando fechar o novo livro de contos, pretendo continuar outro texto de teatro, até agora apenas esboçado, com o título provisório de Campo com nuvens de tempestade.  

VB&M: Nunca houve tempos tão duros para a dramaturgia. Que futuro você contempla para a arte teatral? 

ES: Numa conversa com a sul-africana Nadine Gordimer, ganhadora do Nobel de Literatura em 1991, ela me contou que na época mais tacanha e repressora do Apartheid, o regime fechava teatros, processava e prendia autores e atores, sufocava qualquer processo criativo… aparentemente. Era assim na superfície, mas os autores continuavam escrevendo, as peças eram encenadas em salas de apartamentos e palcos improvisados em quintais. Essa lição tem sido preciosa nestes tempos de ataques à cultura no Brasil, o constrangimento a patrocinadores e produtores de peças, junto com a pandemia que trouxe o fechamento de teatros, destruição de empregos, desânimo quanto ao futuro. Um tempo presente ainda mais sombrio do que durante os piores e mais sombrios anos da ditadura militar.  

Mas autores como eu continuamos escrevendo, produtores como a dupla Moeller-Botelho continuam armando a produção de peças e musicais, atores como Karen Coelho, Clarice Niskier e Carmen Mauro continuam apresentando peças em palcos e via internet, além de dezenas e dezenas de planos sendo finalizados por gente de qualidade como Ulysses Cruz, Kiko Mascarenhas, Tadeu Aguiar, Carmen Mello, em textos a serem estrelados por gente como Bel Kutner, Zezé Motta, Totia Meireles, Vera Fisher, Maria Padilha, Gabriela Duarte, Gustavo Gasparani, para citar apenas alguns dos projetos de que tenho conhecimento.  

Sei que a produção teatral nos Estados Unidos, mesmo em suspenso (teatros da Broadway talvez só reabram em maio do ano que vem), vem sendo mantida viva por uma enxurrada de textos criados e planejados para encenações dentro em breve. Seja lá quando for esse breve. Há vários monólogos nesses planos. Mas há também produções comerciais com grande elenco, como os musicais “The music man”, com Hugh Jackman, e “Company”, com Patti LuPone.

O presente é difícil, mas o futuro está a caminho.

VB&M: Vêm-me à mente agora dois autores bastante ecléticos. Chico Buarque tem grandes peças, mas há décadas parece estar concentrado em seus romances; é o letrista maravilhoso que se sabe, criou algumas deliciosas histórias para crianças. Miguel Sanches Neto é excelente romancista e contista, poeta e crítico; não escreve teatro, mas literatura infantil, sim. A poesia e a literatura infantil têm algum apelo para você?  

ES: Muito. Enorme. Cheguei várias vezes ao início do caminho, vislumbrei um tanto da estrada, mas ainda não a percorri.  Meu planos, no momento, estão em outra direção. Quero fechar Campo com nuvens de tempestade e, em seguida, retomar um romance para o qual venho fazendo pesquisas e anotações, uma saga familiar que se inicia em meados do século XIX, durante o império de Dom Pedro II, e vem até os dias atuais. 

VB&M: Na agência, lemos três contos preciosos de um volume de histórias curtas que você está preparando, Pequenas vinganças. Qual é a curtição específica da escrita de contos _ e da leitura também _ face aos outros gêneros? 

ES: O título do livro, Pequenas vinganças, cita um dos contos. Meu particular encanto com narrativas curtas é o desafio de conter em poucas páginas o universo de personagens por séculos diferentes, como em  O avô do meu avô em Acosta Ñu e Entretanto/Irmãos, avançar no tempo para fazer uma alegoria do Brasil contemporâneo, como em O grande silêncio e Vênus em trânsito, ou voltar no tempo, como em A festa de Vargas e Entretanto/Brasília. Também gosto de rever personagens de trabalhos anteriores, como em Quinze meses depois, sobre a obsessão de um professor por uma mulher que só conhece de passagem em O universo não vale o teu amor, um dos contos de WELCOME TO COPACABANA, ou no conto Anna se despede, em que meu muito querido Paulo, o menino de SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA, lida com as perdas da velhice.  

VB&M: A pandemia e a quarentena têm afetado seus ritmos de escrita e de vida?  

ES: Atravessei os dois primeiros meses, março e abril, e mesmo parte de maio, acachapado, como se estivesse caminhando com sapatos de chumbo (a imagem é criação do Marcelo Ferroni, durante uma entrevista que me deu para o extinto GloboNews Literatura).  

Ademais tinha medo de voltar a falar no personagem Paulo, do meu primeiro romance, porque sabia que o tema dele seria o protocolo do adeus que a morte de uma pessoa querida nos exige a partir de uma certa idade. Vinha tentando há mais de um ano.  

Mas, talvez até por conta da mortandade causada pela pandemia, o texto de Anna se despede aflorou com a densidade e a reflexão necessárias. Foi como uma libertação. Todos os outros contos que vinham, de uma forma ou de outra, tentando ultrapassar essa barreira, chegaram junto.  

VB&M: Revolta, ódio, desânimo, descrença, depressão, gana de resistir _ qual sentimento dá o tom de sua reação ao quadro político no Brasil e nos EUA?  

ES: Resistir exige fôlego. Como estar debaixo d’água, sem poder subir, enquanto lá em cima a superfície está em chamas, tomada por combustível espalhado pela explosão de nosso barco. Os toscos venceram essa batalha e estão no poder. Aqui, nos Estados Unidos, na Hungria, nas Filipinas, e possivelmente ainda conseguirão muitas vitórias. Mas não podemos desistir. Não podemos nos deixar afogar.