WROBEL, O BRASIL E A MATÉRIA DA FICÇÃO

Ronaldo Wrobel, autor de TRADUZINDO HANNAH e O ROMANCE INACABADO DE SOFIA STERN (Record), deu uma parada em sua rotina de advogado para um compor uma crônica deliciosa, delicada, divertida e profundamente verdadeira sobre a matéria da  escrita e da literatura. Em primeira mão na coluna Narrativas do blog VB&M, o autor desmistifica a ideia de que escritores sejam “seres luminosos, bibliotecas encarnadas, donos de opiniões elevadas sobre tudo e mais um pouco”.

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E O BRASIL?

Ronaldo Wrobel

– E o Brasil?

O jovem estava de pé na plateia, olhando para mim:

– O que vai acontecer com o Brasil?

Silêncio no auditório. O mediador havia aberto o debate para perguntas do público e a primeira delas me atingia em cheio. Fiz cara de pensador e bebi água para ganhar tempo, mas não adiantou. Eu simplesmente não sabia o que dizer:

– Como assim, o que vai acontecer com o Brasil?

Éramos três escritores discutindo os limites criativos do romance histórico, questões como fidelidade aos costumes de época, mentalidade, cenários da narrativa. Agora eu me via interpelado por um rapaz de pé, preocupado com o futuro do Brasil:

– Alguma proposta para o país? Onde isso tudo vai parar?! Temos que aproveitar esse encontro para aprender mais com vocês, escritores, pessoas brilhantes.

– Será que escritores são tão brilhantes assim? – reagi com firmeza.

Eu só queria fugir daquela armadilha.

– Será que eu tenho resposta para tudo só porque escrevo livros?

O mediador me ofereceu socorro e a conversa tomou outro rumo, graças a Deus. O foco agora era desmitificar a figura do escritor onisciente, mestre erudito, sabedor daquilo que os outros não sabem (e precisam saber). Sim, o rapaz estava falando sério e ficou bastante desapontado com os rumos da conversa. Fiz questão de procurá-lo na saída para admitir que eu também andava sem respostas para o Brasil. Ele deu um suspiro triste e foi embora.

Quando jovem, eu também enxergava escritores como gurus. Por mais que a internet tenha agilizado o contato entre autor e público, derrubando lendas glamurosas sobre o ofício literário, muita gente ainda considera escritores seres luminosos, bibliotecas encarnadas, donos de opiniões elevadas sobre tudo e mais um pouco. João Ubaldo Ribeiro disse, numa entrevista, que suas conversas com colegas escritores eram muito mais triviais do que supunham alguns admiradores. Não, eles não comparavam Shakespeare com Guimarães Rosa em mesa de bar. Os assuntos eram bem mais prementes: o tal editor FDP que sonegava royalties, o contrato leonino com o agente estrangeiro, fofocas de bastidores etc.

Certa vez fui convidado a falar sobre meu TRADUZINDO HANNAH para senhoras de um grupo de leitura chamado Papalivros. Lá pelas tantas, uma delas recitou um trecho e perguntou como eu tinha criado aquilo. Quando, onde, por quê? Provavelmente elas esperavam um relato interessante, rico em reflexões e cenas envolventes, com lareiras crepitantes num chalé serrano ou ruelas medievais no leste europeu. Pena que não foi nada disso. Eu estava parado no trânsito carioca, dor nas costas, espirrando, às voltas com um bloqueio criativo que já durava semanas. Irritado, convoquei meu cérebro: se você não resolver esse capítulo agora, aqui mesmo, dentro desse carro, na porra desse engarrafamento, vou desistir de literatura e mudar de ramo, criar codorna em Teresópolis, plantar rabanete hidropônico, vender plano funerário, entendeu, cérebro? Alguma dúvida, cérebro?! Já que você não sabe escrever livros, vamos criar codornas!

A ideia nasceu de parto natural, linda, saudável, com todos os dedos, mas não seria justo falar aquilo para minhas prezadas leitoras. Elas mereciam algo mais inspirador, então contei que o tal trecho do romance era uma homenagem aos meus ancestrais russos que fugiram do comunismo em 1917, com dinheiro escondido em forros de casaco, um samovar de prata, enfrentando mares revoltos e rios congelantes, esperados no Rio de Janeiro por um primo que aqui vivia desde o século XIX e tinha uma loja na Praça Onze. Aplausos fervorosos.

Chegando em casa, pensei naquilo tudo: engarrafamento, samovar, rio congelante, Praça Onze, comunistas, dor nas costas. Deitado na cama, fui mergulhando em sensações, sentimentos, emoções, memórias. Lembranças esparsas vinham à tona: aquela viagem em 1986, aquele susto em 1991, aquela escolha em 2002. Revisitei passados que não aconteceram, pessoas que não conheci, lugares inexistentes. Eu era feliz naquela ciranda difusa, naquele ambiente imune à realidade, à razão, à vaidade, a todas e quaisquer certezas sobre questões terrenas como o Brasil e seus engarrafamentos. Paradoxalmente, era ali que minha vida fazia algum sentido e eu podia colher boas ideias para contos e romances.

Pensando bem, acho que falei a verdade para a senhora do grupo Papalivros.