VISIONÁRIO E SAUDOSO LEMINSKI

A Conversa Com (A)Gente que encerra 2020 para a VB&M é um legítimo especial de Natal. Emocionante ping-pong – inédito até ocupar o espaço desta coluna -, a entrevista foi feita não pela equipe da agência, mas ofertada pelo jornalista, escritor, amigo do blog, treinador de cães e cinófilo militante (atividade muito apreciada pelo pessoal aqui), Paulo Mohylovski. No final dos anos 80, ele teve longa e rica conversa com o poeta e pensador Paulo Leminski – quem sabe, a última entrevista concedida antes de sua morte em junho de 1989. A maior parte daquele documento foi publicada postumamente pela Folha de S. Paulo, mas o verdadeiro presente de Natal é que Mohylovski, revirando papéis antigos, encontrou um trecho – não incluído na matéria da Folha – com preciosas e visionárias reflexões do gigante e tão saudoso Leminski sobre o amor, a poesia e a emancipação da mulher.

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Paulo Mohylovski

Entrevistei o poeta Paulo Leminski um pouco antes da sua morte. Ele não parecia que iria morrer em breve. Estava mais vivo do que nunca. Era uma pessoa inquieta. Foi uma ótima entrevista. Primeiro tive que superar o impacto de dar de cara com seu lindo apartamento no Pacaembu. Os poetas que eu conhecia pareciam todos mortos de fome e não moravam em amplos apartamentos. Mesmo assim, Paulo Leminski parecia um hippie maluco, mas ele também trabalhava como publicitário e estava fazendo televisão. Conversamos bastante. Foi uma troca intensa de ideias. Saí com um bom material e acabei não publicando quase nada. Somente depois de sua morte fui até a Folha de S. Paulo tentar vender a entrevista. Pedi para ser recebido pelo editor da Folha Ilustrada. A recepcionista interfonou para a Redação e, por incrível que pareça, me deixaram subir. Falei com a secretária do editor e deixei o material com ela. Dias depois, recebi um telefonema do Alcino Araújo Leite, à época editor da Ilustrada, que disse que não só publicaria a entrevista como me pagaria bem mais pelo valor histórico da mesma. Eu só tinha que vender os direitos para a Folha de S. Paulo. Vendi correndo, pois eu fazia parte do grupo de jornalistas e poetas famintos. E se hoje eu quiser publicar a minha própria entrevista, eu tenho que pagar para a Folha. Enfim, a entrevista foi publicada e eu fiquei famoso por uns dois dias. Agora, remexendo em papéis velhos, descobri um trecho que ficou inédito. Um pequeno trecho em que Leminski aborda como sempre a poesia e o comportamento feminino daqueles longínquos anos 80.

Paulo Mohylovski: Há um verso do Pound que você traduziu: “Só em época de decadência a poesia se afasta da música.”

Paulo Leminski: Exatamente.

PM: Então, a época é de decadência?

Leminski: Ao contrário, nunca se dançou tanto. Os homens que não dançavam – dançar seria feminino – hoje entendem a dança como uma forma de beleza e de sedução. Foi legal isso que você lembrou. Dança, poesia e música estão associadas. Pound escreveu que “a poesia decai quando se afasta da música e a música decai quando se afasta da dança.”

PM: E como você está vendo as relações amorosas atualmente?

Leminski: Não é o melhor momento entre as pessoas. Existe algo interessante, que é a emancipação da mulher, que se torna um ser completo e independente do homem. Aquele relacionamento que se baseava na cristalização da mulher se descristalizou. Não há mais a perspectiva da vida inteira. Ninguém se aproxima do outro com a perspectiva de que o relacionamento vá durar a vida inteira. Isso é comprido demais. As pessoas sabem que as coisas são mais complicadas do que isso.

PM: São mais imediatistas?

Leminski: São. Aquela estabilidade de “por toda a vida” era baseada numa pressuposta inferioridade feminina. As mulheres acabavam aceitando isso, o que tornava as coisas fáceis para o homem. Hoje, as mulheres não aceitam aquele antigo papel. Os relacionamentos acabaram se tornando essencialmente problemáticos. Havia uma aceitação de um certo padrão de normalidade. Atualmente já não há uma gramática da relação entre as pessoas. Mudou o sentido. As mulheres estão mudando. O homem está na defensiva. Ele perdeu a hegemonia sobre a mulher. As mulheres estão crescendo e escapando. Elas já não estão mais cabendo no esquema dos homens. Isso causa toda uma espécie de desequilíbrio que é positivo. É a vida crescendo. É a mulher ascendendo a uma posição superior. A mulher está se transformando ao ponto de elas nem saberem o que são ou o que vão ser. Era algo que estava parado e se pôs a caminhar. Para onde? Não sabemos.

PM: E a poesia no meio disso?

Leminski: Onde existirem pessoas, seus sentimentos estarão ligados à poesia.

PM: E a poesia ainda está ligada à sedução?

Leminski: Acredito que sim. A poesia é uma entrega. E uma entrega é um gesto especial. Se você transmite no seu poema uma sensação de sinceridade, de coração aberto, isso é entrega! É uma ponte forte entre as pessoas. A associação entre poesia e sedução é permanente.

PM: Você se utiliza disso?

Leminski: Todo mundo se utiliza disso. Você está utilizando o tempo todo. Para que a gente escreve? Por que a gente cria? A gente escreve para ser amado. Ser amado de um modo geral. O processo criativo é no fundo um processo de carência afetiva. Os poetas têm muita carência afetiva. Poesia é um modo de ser amado. Existe poesia pra preencher esta necessidade.

PM: O amor, então, seria o assunto principal da poesia?

Leminski: Não. O poeta João Cabral de Mello Neto viu poesia na geometria, na matemática, na exatidão. Então, um poeta de extrema sensibilidade como João Cabral enxerga poesia em lugares onde tradicionalmente não há poesia. Quem vai fazer o assunto da poesia, com a sua sensibilidade, é o poeta. Por exemplo, não há poesia no lixo, na crueldade, aí vem um grande poeta e faz poesia do lixo e da crueldade. Então, não é bom colocar regra nesse território desconhecido que é a poesia.

#paulomohylovski