UMA TURNÊ CHAMADA JOSÉ

Narrativas & Depoimentos publica resenha de Marcio Paschoal, autor da biografia ROGÉRIA (Estação Brasil) e do romance inédito JOÃO ANTÔNIO E OS BEE GEES, entre vasta obra de ficção e de uma não-ficção com forte ênfase na música, sobre o show do cantor e compositor Zeca Baleiro no Rio de Janeiro. Na prosa gostosa de Paschoal, o texto narra a atmosfera intimista e descontraída do evento, em que o cantor intercala suas canções e histórias numa minirretrospectiva de sua carreira.

Agora que a pandemia está dando um tempo, começamos a ver ressurgir alguns espetáculos ao vivo. Um, em particular, vem chamando atenção por mesclar singeleza, talento e desafetação. O nome do show já diz um pouco sua intenção. “José”. Simples. Poderia também ser “José Ribamar” ou “José Ribamar Coelho Santos”. Mas ficou mesmo “José” a nova apresentação musical e intimista do cantor e compositor Zeca Baleiro. “Chovia no canavial / na noite em que eu quis partir / tristeza no meu carnaval / canta longe a juriti / o canto que era o sinal / de tudo que estava por vir / no mato do amor, matagal / um gesto que eu nunca esqueci / pichado no muro de cal / no engenho que eu mesmo ergui / moenda de dor, temporal / na noite em que quis partir”. Um cartão de boas-vindas. Em clima de bate-papo, tem início uma espécie de autobiografia musical (o tempo passa, já são mais de 20 anos de carreira) que corre solta e despretensiosa, com histórias de vida, canções marcantes na vida do artista. E claro, Zeca entremeia a conversa com alguns sucessos. Nada engessado, numa variação que pode incluir “A Flor da Pele”, “Lenha”, “Bandeira”, “Telegrama”, releituras como “Muzak” ou canções dos discos mais recentes, “O Amor no Caos” e “Canções d’Além-Mar”.

Como o show é uma minirretrospectiva, senti falta da ótima “Minha Casa” (CD Líricas) e do hit do “Diabo”, o cara mais underground, mas Tuco Marcondes não estava lá para as guitarras distorcidas. Zeca solo, em estado puro de violões, desfia histórias, relembrando as canções que escutou em Arari no velho rádio com válvulas, toca clássicos em vinis na vitrola, Nora Nei, Pepino di Capri, Sérgio Sampaio, e o público, como Zeca mesmo ressalva “na sua maioria vintage”, vai se deliciando. Há o momento literário, com poemas de autores tão necessários de serem apresentados ou resgatados, como Jorge de Lima. Nada é programado nesse encontro do artista com sua galera e o repertório flui de acordo com o andar das conversas. A plateia é convidada a participar em duetos. Zeca justifica que em cada lugar em que se apresenta o sotaque do coro difere. Por aqui tivemos um hilário “viver é bom esquece as penassxx vem morar comigo em Babylon”.

Zeca Baleiro recebe o público como se estivesse na sala de sua casa, narra passagens curiosas (como quando se apresentou no programa de auditório da Xuxa) ou na bem-humorada autocrítica, em recortes de jornais sobre seus trabalhos, quando a autora cisma com o verso de “ando triste, tristinho…”. No final, bis esperado, Zeca emenda um repente-protesto contra a figura nefasta de Bolsonaro, o tosco. Tudo transcorrendo com naturalidade e propício a improvisos, faceta múltipla da verve do artista. Zeca já passou com sua turnê “José” por São Paulo, Recife, Maceió e Rio de Janeiro. A próxima parada é Porto Alegre. Vida longa ao Sr José, cronista musical com seu humor inteligente e seu carisma natural. Ou vice-versa.