UM RECADO PARA GUEDES

Com uma proveitosa lição para novos editores, ampla visão macro e micro econômica, reflexão política profunda e a comovente expressão de um sentido humanitário, Rejane Dias, fundadora da Autêntica, deu uma Entrevista a Luciana Villas-Boas cuja leitura, se não dizemos que é imperdível a fim de evitar a linguagem por clichê, é altamente recomendável. Rejane tem toques a dar a editores, autores e leitores, mas neste caso quem mais gostaríamos que visse suas declarações é o ministro Paulo Guedes. Temos todos que ir unidos à luta contra novos impostos sobre o mercado editorial, e Rejane oferece a bandeira: “Livro é artigo da cesta básica”.

VB&M: A Autêntica lançou cerca de 20 títulos na primeira metade deste pandêmico 2020. Como conseguiram isso e como avaliam os retornos até agora?

RS: Na verdade, lançamos 29 títulos de janeiro a junho e, de julho a agosto, vamos lançar mais 19. A meta é chegar a 80 títulos até novembro de 2020, mas havíamos planejado cerca de 115 novos livros para este ano; portanto haverá uma redução significativa no número total de lançamentos. Para manter ativa parte da grade de livros novos, nós alteramos a lógica do nosso instrumento de Análise de Viabilidade. Para os livros que já estavam em fase avançada de produção _ faltando apenas impressão e papel _, consideramos custo apenas as despesas de impressão de uma tiragem mínima o suficiente para bancar o investimento gráfico, não incluindo na definição de tiragem, digamos, “ideal” os custos anteriores a essa etapa. Então houve casos em que reduzimos a tiragem de 5 mil pra 2 mil exemplares, de 3 mil para mil, de 7 mil para 4 mil, etc. _ e tivemos gratas surpresas porque, reduzindo as tiragens, também reduzimos o volume de consignações, o que fez com que alguns títulos vendessem mais rapidamente em um período menor do que o usual. Além disso, ao reduzir o número de lançamentos também nos dedicamos mais à divulgação de cada livro publicado, o que impactou positivamente nas vendas. Percebemos também que alguns títulos eram muito adequados para serem lidos na quarentena e os impulsionamos bastante nos períodos de pré-venda. Um livro como o “Mal-estar da Cultura”, de Freud, por exemplo, vendeu cerca de 2.700 exemplares em menos de 40 dias. Títulos de ciências sociais, psicanálise e filosofia ganharam um impulso surpreendente nesse período de isolamento social.

VB&M: Em sua página The Saturday Essay (“o artigo do sábado”), de 24 de julho, o Wall Street Journal defendeu que o apoio emergencial a empresas que já não estavam no caminho certo de gestão e finanças antes da pandemia simplesmente premiará a ineficiência e dificultará a retomada econômica. Do comando de uma editora de médio porte que navega com excepcional competência uma época de negócios tão difícil e dura, como você vê esse tipo de argumentação e como avalia o suposto apoio emergencial do governo brasileiro às pequenas empresas?

RS: Eu acredito que diante de uma hecatombe, de um evento como essa pandemia do Covid-19, não há espaço para certas argumentações. Não se trata de avaliar quem merece ou não qualquer apoio emergencial, mas de oferecer uma chance para que as empresas atravessem um período completamente inesperado, e, mais que tudo, possam se permitir aprender durante essa batalha. Portanto, qualquer programa de socorro aliado a uma gestão de custos mais realista pode ajudar uma empresa pequena ou de qualquer porte a ganhar tempo para se adequar a uma nova conjuntura. É preciso atuar e reavaliar ao mesmo tempo, mas se não há entrada de recursos tudo fica bem mais difícil. Felizmente, percebo que as editoras conseguiram manter uma boa parte do seu faturamento com o crescimento das vendas nas lojas ponto.com. Mas a situação das livrarias físicas é completamente diferente. Eu sou normalmente bastante otimista, mas tive uma reação completamente apática em relação às linhas de crédito oferecidas pelo governo brasileiro, porque percebi que haveria os mesmos empecilhos de sempre, na rede bancária, para que o crédito chegasse com agilidade e a um custo suportável para as empresas. Nós não precisamos recorrer a esse suposto apoio emergencial e, felizmente, também não cortamos postos de trabalho, mas depuramos vários custos, repensamos as reimpressões – o que foi possível com a suspensão das consignações. E tivemos, sim, bons resultados com alguns lançamentos. O doloroso tem sido lidar com a inadimplência de vários parceiros, o que nos obrigada a rever sempre nosso fluxo de caixa. É importante dizer que o Grupo Autêntica não tem uma experiência tão longa com livros comerciais, portanto, é natural que com o tempo a gente aprenda a fazer aquisições mais assertivas, aprenda a girar melhor o nosso estoque. Tínhamos um catálogo predominantemente universitário até poucos anos atrás, só começamos a abrir mais o leque há uns cinco ou seis anos; temos um longo aprendizado pela frente. Uma decisão que se mostrou muito assertiva nos últimos meses foi investir mais em Comunicação. Em tempos de pandemia, isso se mostrou ainda mais adequado, porque é preciso falar com mais qualidade com o leitor(a), principalmente o leitor que compra em lojas de venda online.

VB&M: Quais podem ser as consequências para a indústria editorial da aplicação de um novo imposto sobre o livro neste momento de crise?

RS: Aff, não estávamos considerando essa possibilidade agora e teremos que ir à luta com muita força para impedir que esse governo desconsidere o livro como “um produto da cesta básica”. Porque a proposta do governo é eliminar os subsídios para vários segmentos, mas ele pretende manter a isenção para produtos da “cesta básica”, portanto é preciso lutar para que o estado reconheça o livro como um produto de primeira necessidade. Eu acredito que temos condições de defender essa bandeira, se todos da cadeia do livro, se as instituições que nos representam, trabalharem unidos. O preço do livro nos últimos anos se manteve bastante baixo, se comparado a outros produtos e se considerarmos a inflação do período, mas isso foi possível devido à isenção dos impostos Pis e Cofins. Será um golpe duro justamente neste momento em que finalmente percebemos que o livro é, mais do que nunca, artigo de primeira necessidade. Durante a quarentena, o livro se tornou um protagonista bastante antifrágil, poruque tem sido grande companheiro de milhares de pessoas que estão aderindo ao distanciamento social.

VB&M: Já é possível identificar tendências de marketing e também de conteúdo literário nesses novos tempos pós deflagração da pandemia Covid-19? Afinal, não sabemos quando poderemos falar de pós-pandemia…

RS: Nós estamos depurando muito o nosso catálogo, inclusive resgatando livros antigos que podem ser revistos, repaginados. Estamos entendendo que vale muito a pena publicar mais para um leitor que trata o livro como um bem fundamental, ou seja, com crise ou sem crise o livro continua fazendo parte da sua vida. Temos no nosso DNA a produção de livros das áreas de Humanidades e vamos nos dedicar mais a isso. Também vamos ampliar a tradução e publicação de clássicos e vamos atrás de livros bons de ler, de ficção e não-ficção. Livros que traduzem o espírito do nosso tempo, tanto que criamos uma nova coleção no selo Vestígio chamada “Espírito do tempo”, em que publicamos “Engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli, “Naufrágio das civilizações”, de Amin Maalouf, e dentro de algumas semanas publicaremos “Uma breve história das mentiras fascistas”, de Federico Finchelstein. É isso, livros bons de ler, romances que nos fazem perder o apetite porque não queremos parar de ler. Livros que contam boas histórias. Eu tenho ainda uma fantasia que é pensar essa nova década de 20 como uma belle époque, quando teremos muitas possibilidades para explorar. Segundo Lilia Schwarcz, essa pandemia marca o fim do século XX, e eu gosto muito dessa ideia. Portanto, quero entrar no século XXI com muita esperança, e com vontade de publicar cada vez melhor para leitores que valorizam um livro bem feito. Nosso Grupo é muito unido e focado no desejo de publicar livros que não sejam descartáveis, e seguiremos por esse caminho. Apesar de estarmos indignados com “o estado das coisas”, estamos esperançosos.