TERRA INCÓGNITA NO SUL DO BRASIL

A coluna Narrativas e Depoimentos de hoje traz a abertura antológica do inédito TERRA INCÓGNITA, romance de estreia de Edgar Garbelotto, que além de escritor é tradutor e grande divulgador da literatura brasileira nos EUA, onde vive. Sua tradução de LORDE (Record), de João Gilberto Noll, publicado em inglês pela Two Lines Press, venceu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro Brasileiro Publicado no Exterior. No trecho de TERRA INCÓGNITA, transcrito a seguir, Clara, uma jovem de 22 anos casada às pressas com um estranho no Porto de Gênova para atender às exigências da emigração para o Brasil, chega ao sul de Santa Catarina após uma jornada de dois meses. Seu desespero ao se deparar com um destino irreversível e o novo lar força-a à escolha imediata mas fracassada pelo suicídio no rio próximo. No decorrer da trama, Clara e os outros personagens de TERRA INCÓGNITA tentam encontrar um sentido e recriar um novo mundo dentro da realidade rural do Brasil do final do século XIX. A sublime narrativa histórica aborda temas contemporâneos dentro do contexto da formação da sociedade brasileira, como misoginia, homofobia, transfobia e racismo, além das questões universais da existência humana e da experiência da imigração.

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Edgar Garbelotto

Ao chegar ao seu destino, quando o sol se punha atrás dos morros de Nova Veneza, Clara Zanini Conti correu até o rio mais próximo para se matar. O alívio que a morte lhe traria era seu único pensamento quando entrou na mata fechada. Hipnotizada pelos estrondos do rio, ela havia se afastado do grupo de imigrantes que se largava sob as sombras em frente ao barracão. Suas vozes sumiam a distância. A única certeza em sua mente cansada era o rio escuro rasgando o verde da mata, chamando por ela. O rufar das águas nas pedras puxava-a por uma linha invisível até a sua origem, encantando-a. O canto das águas crescia no pavilhão dos seus ouvidos quanto mais ela se aproximava do rio, até ocupar todo o pensamento, ensurdecendo a voz da razão, encapsulando sua mente como uma serpente engolindo um ovo.

Ela parou na margem do rio, calculou a força da água e seu volume. Contemplou sua coragem, contrastando-a com o futuro. Rejeitou o futuro, não quis imaginá-lo. Escolheu a coragem, que era o coração batendo apressado nas veias, o ritmo do instante a empurrá-la. Imaginou a libertação, sua alma sendo lavada pelo redemoinho, esfregada pelas correntezas, evaporando, limpa, pura, em direção a Deus, que a perdoaria pelo maior erro de sua vida: trocar a Itália pelo Brasil.

Mama e o restante da família um dia receberiam a notícia e também a perdoariam. Entenderiam que a morte fora uma escolha mais sábia e prudente do que esperar por algo de bom na nova vida. A morte seria a culminação da viagem que começara dois meses antes, quando largou o coração protegido do Vêneto pela promessa salvadora do sul do Brasil. A almejada jornada rumo à salvação havia se descarrilhado numa imprevisível descida ao inferno. Era aqui, agora, o fundo do fundo do inferno, na curva de baixo do mundo, na clausura de matas e montanhas chamada Brasil. O céu da Itália, tão longe, tão acima, nunca seria visto outra vez.

Entrou no rio sorrateiro, lustroso, e sentiu-se pequena diante do seu poder. Os sapatos afundaram no lodo escuro e, por um minuto, o medo foi substituído pelo prazer repentino da água refrescando os tornozelos. O prazer inesperado a desconcertou; era seu primeiro contato com água em semanas; o corpo e as roupas haviam se tornado camadas cúmplices do mesmo fedor, de suores em cima de suores, suores físicos e nervosos, transformando-a num animal que ela mesma começara a temer. Que alívio seria sentir a água atingir-lhe a cabeça e libertá-la das poeiras que carregava nos cabelos havia semanas, poeiras antigas das estradas da Itália, poeiras dos ventos do Atlântico, poeiras do solo sujo do Brasil.

Sim, lavar tudo, e deixar-se levar pela correnteza, pensou novamente. Arrancou os pés do lodo e deu dois passos para dentro do rio. A água lhe batia nos joelhos, o vestido se grudou frio às canelas magras. Rio adentro, a correnteza empurrava mais forte, mais dois passos o rio a sugaria, e o mundo tal como existia submergiria com a sua vida.
O momento vacilou na última luz vespertina. Um pássaro covarde gritou em meio a árvores sem mostrar a face. Quem a chamava? O Diabo ou um anjo tentando impedi-la? Olhou acima da copa das árvores, uma mancha de sangue contornava os morros. O dia morria, era sua hora também.

Baixou o corpo. A água alcançou seus seios. O rio cheirava como uma refeição podre, servida para ela. O odor a fez querer vomitar.

Mergulhou a cabeça. As águas escuras se fecharam à sua volta, o céu desapareceu, o pássaro covarde cessou o gri to. Tudo esperava o fim do agora. Não mais passado ou futuro.

Mas Giacomo agarrou-a pela saia e a arrastou para a beira do rio, gritando. Clara não respondia às perguntas do marido. Seu pranto eram os uivos de um animal forçado a viver, após encarar de perto o alívio da morte. Seus gritos nasciam do ventre magro, para a morte, pois somente ela poderia resolver a aflição do instante; e o instante era a célula viva do tempo; e o tempo, o corpo da vida que estaria melhor morto.

Os gritos de Giacomo abafaram os de Clara, que se encolheu como uma concha, deitada na relva às margens do rio. Seu choramingo tornou-se um sibilo agudo, enquanto o marido implorava que parasse com aquela vergonha. As pessoas se acercaram e ela sentiu uma satisfação estranha por receber tanta atenção, como se a manifestação pública do seu desespero pudesse justificar sua existência.

Dois homens a ergueram do chão e a carregaram – um a segurava pelos braços e o outro pelos tornozelos – como se ela fosse um porco abatido para a ceia, embora suas parcas carnes não rendessem sequer um caldo. Levaram-na para a casa onde as outras famílias repousavam da longa viagem.

Lá dentro, arrancaram-lhe os sapatos, as meias, o vestido encharcado de rio. Puseram-na sentada a uma grande mesa. Ela era uma boneca dura sendo despida. Cobriram-na com uma manta de pele de ovelha que ainda exalava a adrenalina do animal morto. Alimentaram-na com uma sopa morna, que bateu fria no fundo do estômago vazio. Nem a sopa afastava o gélido assombro que ainda trazia do rio. O cheiro fétido das águas voltou-lhe às narinas, e ela contraiu o ventre para que a sopa se aquietasse dentro de si, senão vomitaria.

Isso é cansaço, isso passa, ela está em estado de choque, sente falta do irmão, precisa descansar, precisa dormir, precisa do marido, Giacomo… As vozes murmuravam tantas coisas… Aos poucos foram se desvanecendo. Uns até riam, outros já dormiam pelos cantos da casa, que casa mesmo nem era. Havia apenas um fogão a lenha no centro do grande cômodo, a longa mesa em que agora seus olhos procuravam um escape entre as ranhuras na madeira e dezenas de camas alinhadas contra as paredes. Não era uma casa, e sim um barracão em que os casais se acolheriam até que cada um construísse sua própria morada. Suas próprias casas, suas próprias terras… Clara não sabia mais no que acreditar. Eram tantas histórias, promessas… Quantas pessoas havia naquele barracão? Não sabia. Não sabia mais contar, não sabia mais pensar, tudo o que lhe vinha à mente era irracional, tudo era encoberto por uma visão perplexa: o rio que a esperava, amanhã de manhã, antes que toda a gente acordasse. Quando ninguém estivesse vendo, tentaria novamente. Esta, sim, era uma certeza, tanto quanto dois e dois são quatro. Ela podia contar, podia pensar sobre o seu próprio fim, que não dizia respeito a ninguém: nem a esse marido arranjado de última hora, nem aos donos das vozes. Eles que se danassem – o assunto agora era entre ela e Deus, e Deus a havia posto à prova e vencido, portanto ela se entregaria derrotada para Ele quando a manhã surgisse.

Deitaram-na em uma das camas improvisadas. Passaram-lhe a mão na cabeça. Pobrezinha, diziam. E ela, calada, fechou os olhos inchados de chorar para que pensassem que dormia. O frio do rio não abandonara o seu corpo, e ela tremia sob camadas de colchas. Ao contrário dela, à sua volta, todos se abanavam do calor tropical. Mas seus pés eram blocos de gelo que não derretiam. Ela tinha febre no Inferno.

Logo, apagaram os lampiões, as brasas do fogão morriam lentamente, e o barracão roncava o ronco coletivo do cansaço. Giacomo juntou-se ao ronco geral ao deitar-se ao seu lado na cama estreita, a mão ossuda pousada na curva da cintura dela, como fizera em todas as noites no navio. Não tentava nada mais, nem mesmo um beijo, pois ainda não haviam tido um minuto a sós. Sempre dormiam em qualquer canto, no meio dos outros. Nessa noite, porém, ela não sentiu a ereção dele contra as suas costas.

Clara espremeu o corpo entre o marido e a parede. Abriu os olhos dentro da noite escura do Brasil. Lá fora, gritos e sussurros de animais misteriosos que, como ela, se mantinham acordados, acorrentados por sua própria natureza. Era a vigília dos atormentados. Somente pragas poderiam habitar o inferno que pulsava na escuridão quente lá fora. O Brasil não era o paraíso prometido; era o inferno verde onde os pobres italianos haviam sido ludibriados com a promessa de uma vida melhor. Na escuridão do barracão, Clara lembrou-se do rosto do agente de imigração, Pietro Montefusco, com seus olhos marrom-claro de cobra revirando na face vermelha, as sobrancelhas grossas arqueadas em semicírculo, o bigode negro espetado para frente. Agora, na memória de Clara, seu rosto de palhaço havia adquirido um semblante diabólico, como se tivesse recebido uma nova camada de pintura com a cor cruel da realidade.

A imagem do agente Montefusco pairava sobre a cama como se uma vela lançasse uma luz trêmula na face do homem. Clara não conseguia dormir, relembrando das promessas do agente do diabo. Enganada, arrependida, amedrontada, sem irmão, casada com um homen franzino de gestos brutos que mal conhecia, ela se perguntava – se acaso a coragem para morrer não voltasse, e acaso fosse condenada a viver – se jamais conseguiria dormir novamente.