SOBRE A FORÇA E A FRAQUEZA

Narrativas & Depoimentos publica “Bárbara”, conto inédito de Cezar Tridapalli, autor de VERTIGEM DO CHÃO (Moinhos). A história foi tema de discussão no clube de leitura e psicanálise da livraria sala Tatuí, em São Paulo. Ao narrar a conversa entre uma mulher e um homem, conhecidos de infância que se reencontram em um ônibus, Cezar promove um feito de linguagem literária e profunda reflexão sobre a natureza humana.

*

BÁRBARA

E ainda por cima precisaria votar, rever a cidade, as mesmas pessoas agora envelhecidas – existe envilecidas? – como espelho, eleições presidenciais pegando fogo, o país um circo beijando a lona, era palhaçada e era boxe, a mãezinha daquele jeito, ela daquele jeito, tudo daquele jeito, mas de que jeito seria se o jeito é esse, se não fosse esse aí sim seria de outro jeito, e buscar o pai na cidade e votar e enfrentar duas horas de ônibus, se pelo menos conseguisse dormir na viagem, mas dormir era sonhar não um sonho bom, corvinhos girando como se pássaros amarelos de desenho animado brotassem depois de ter levado uma paulada na cabeça. Dormir, só com paulada na cabeça. Animada era o que ela não estava, era desenho de alma seca, deus vazou do entusiasmo, só asma e miasma agora, murcha de tudo, haja força de flor para tanta náusea e ferro na alma. Pelo menos não há morte para os minerais. A rigor, existe rua que não seja sem saída?

– Você sabe que cientistas são movidos mais por dúvidas do que por certezas, né?

– Vocês se acham. Como se só vocês tivessem mais dúvida que certeza. Vai dizer que na tua vida você não tem mais hesitação que convicção? Duvido. Ó, meu duvido já é dúvida, dúvida da vida, que a gente acha que é dádiva, mas é dívida devida. Não entendo aonde você quer chegar.

– É que estou fazendo um experimento com minhocas e ainda não consegui entender por que elas cagam terra.

– Talvez porque elas comam terra?

– Quer dizer que você come merda?

Susto, sobrancelha levantada, esgares, hã.

– Haha.

– O cientista da quinta série.

– Cientistas têm senso de humor.

– Na sua terra chamam de humor? E de senso? Na minha época, ríamos de piadas assim. Pelo menos me fez lembrar da piada e de quanto éramos adoravelmente idiotas. Mas rir adulto é só idiota mesmo, adorabilidade zero.

– Cientistas têm o ahá, mas também o haha, entendeu?

– O que tem pra entender?

– O ahá é o eureca, o haha é o da risada que, assim como o ahá, também vem depois de uma surpresa, de uma descoberta.

– Ah.

– Interessante isso aí: além do ahá e do haha, dá pra pôr o ah agora. O ah podia ser o da arte. Ciência, humor e arte, ahá, haha e ah.

– Arte combina melhor com oh (ou puta que pariu, mas não disse). Você quer, tipo, dizer que isso que você fez é arte? Arte de piá pançudo, e sem graça. Bem, desculpe, não quis ofender. Piá pançudo é gíria na minha cidade, pra guri imaturo. E aí eu não vou me desculpar – disse, vendo os pelos da grande barriga dele pedindo liberdade pelos vãos da camisa mal abotoada.

Estavam no ônibus quando se reencontraram. Ela no ônibus a contragosto, eleições depois de amanhã, deveria votar e buscar o pai. Duas facas na garganta. E aí ela foi pedir licença porque ele já ocupava o assento do corredor e ela precisava passar por ele e ficar na janela, ela. Incomodou-se porque ele não se levantou, só encolheu um pouco as pernas e ela, digamos, não curtiu aproximar o baixo ventre do rosto de um estranho.

Projetava nele um pensamento dela, depois pensou mas esse aí, coitado. A conversa sobre minhocas, ciência, arte e humor não tinha sido a primeira coisa que falaram, tinha acontecido depois do usual você não é a…? e do sim, nos conhecemos? e das lembranças da escola que ele parecia manter frescas enquanto ela as mantinha fracas, não tinha ideia de que tudo aquilo havia passado pelo seu passado. Se ele estava falando, devia ser verdade? Ele achava o máximo da coincidência, uma conspiração de astros, depois de tantos anos, caírem lado a lado naquele trono de poltrona – foi a expressão que ele usou. Ela achou apenas um azar. E ele veio com aquilo de que há pessoas que a gente não vê faz um tempão e depois que encontra parece que permaneceram amigos desde sempre, que não teve lacuna nem hiato nem abismo de tempo remoto. Ela achou apenas um azar. E ele falou da vida, que era laboratorista numa escola e trabalhava com as crianças fazendo experiências malucas – ah, aprendeu a piada com os alunos, entendi –, reagindo umas coisas com outras coisas e cuidando para que o laboratório não explodisse. Além disso, fazia uns lances aí, e você? Eu só estou com a parte de uns lances aí. E ela se surpreendeu com a memória do como era mesmo o nome dele? com a memória do longo prazo, desde que acreditasse que o que ele contava fosse verdade, e também com a memória de curto prazo, pois ele pegou uma expressão perdida na conversa e retomou com um você disse que na sua época você ria de piadas assim, então quer dizer que deve continuar rindo, a menos que eu esteja falando com um fantasma. Essa época de agora, com você aqui e viva, não é a tua época?

– Preferia que não fosse.

Ajeitou-se na poltrona, curvando o tronco para a janela, um lado da bunda enterrada no macio enquanto a outra ficava quase no ar. Achou-se pouco resguardada, que mulher precisa ter cada tipo de cuidado que vou te contar, viu? Isso ela pensou, não falaria, imagina oferecer uma conversa dessas para o doidinho da minhoca, o aro dos óculos grudado às hastes por uma fita adesiva.

Precisava tomar cuidado com o corpo e com as palavras. Reajeitou-se, agora menos torta, buscou uma mínima simetria. Ele entendeu como disposição para um papo, era daqueles que entendem os paranauês do corpo que fala e tal. E como ela se afastou da janela, isso queria dizer que se aproximou do trono da poltrona – urgh – dele. Estava dando muito na cara, minha cara.

– Nossa época é como as outras: roubalheira e sem-vergonhice.

Ele nem acreditou no que dizia, estava entre conquistar um corpo e falar o que pensava, no meio só fio de silêncio que não deixaria nem uma coisa nem outra, precisava escolher o lado para onde saltar.

E, meu, ela estava pensando na mãe, que história era aquela de sem-vergonhice e roubalheira? Desde o dia em que ela não aguentou mais, deu um tapa de ponta de dedos na nuca da mãe e berrou: para com essa história, mãe, não aguento mais ver você derrubar uma colher e falar haha, quando cai colher, vai vir uma mulher, quando cai um garfo, vai vir um macho. Bateu mesmo, berrou mesmo, a mãe perdida nas obsessões, o mesmo balaio de frases prontas que não conseguiam mais se desenrodilhar e formular um pensamento novo. Ela sabe que não conseguiam nem conseguiriam, as paradas neurológicas, o cérebro tinha fechado o circuito, as sinapses ruas sem saída – a rigor, existia rua que não fosse sem saída? – eram culpa da mãe? Do cérebro da mãe? Dá para se safar de culpa colocando a culpa em braço e mão e nas cordas vocais por terem batido – foi tão de leve, quase um carinho – e berrado com o cérebro da mãe, mãezinha, desculpa, não fui eu, foi meu braço e mão, foram minhas cordas vocais que fizeram isso e além do mais não gritei com a senhora, mas com seu cérebro.

Chorou, a mãe. Algum fio do circuito fechado se soltou, e no minissafanão – existe safaninho? – e no berro algo machucou que fez doer. Depois de recolher as lágrimas, a mãe: o teu pai disse que vinha aqui qualquer dia, vai ver a colher é isso. E dá-lhe erguer a colher, colocar na mesa, ajeitar a mãe na cadeira de rodas. Naquela noite, apareceu um macho que não era o pai – e era uma colher que tinha caído, mãe –, sim um ladrão que entrou, deu umas porradas na velha – aí com força mesmo – e levou a tv. De tubo ainda. O que mais impressionava era por que ela, naquele ônibus, contava tudo pra ele. Ela só queria encostar a cabeça no vidro e não pensar em nada – até parece – e chegar logo na casa do pai e dizer toma que a filha é tua. A filha, no caso, era a mãe dela, ex dele, entendeu?

– Sim, entendi. Eu falava da sem-vergonhice e da roubalheira dos políticos. Por culpa deles que esses vagabundos fazem maldades com essas velhas.

– “Essas velhas?” Essa senhora, no caso, é minha mãe.

– Que você chamou de velha e com quem você gritou. É exclusividade dos filhos xingarem os pais?

– Você poderia xingar os teus à vontade, nunca que eu faria coro ao teu solo. – Isso não livra você da maldade.

Ele entendeu tudo – se era isso mesmo, ninguém sabe, mas ele entendeu tudo –, ela estava desabafando e queria palavras de consolo, acho até que um conforto físico, uma deitadinha no peito, e vai que uma deslizada mais pra baixo. A curva das coxas fazia parábola de encher os olhos, pena a blusa grossa não deixar ver direito mais contornos. Ainda dava tempo de ele recuar, oferecer alento e palavras aquecidas, jogar o foco em ladrãozinho chinelão vagabundo que merece apodrecer, que é uma opinião de que ninguém discorda, ninguém, ninguém. Mas a humanidade já tinha perdido a ilusão de que habitava o centro do universo, depois a de que era criação divina especialmente escolhida, e então a de que comandava a própria cabeça e suas vontades. Duas energias brigavam e não conseguia ver um vetor de conciliação: ou mimetizava o discurso do compreensivo, os gestos das gentilezas, e talvez fosse premiado com um beijo e quem sabe alguma forma de sexo – o trono da poltrona em posição favorável no ônibus meio vazio – ou aproveitaria aquela quase estranha, que nunca mais veria na vida, para compartilhar as nojeiras – ele mesmo as chamava assim, ainda havia voz dentro dele que não era bem ele? – que ninguém tinha coragem de repartir.

– Eu não condeno você, sabia? Não condeno.

Agora ele estava sendo juiz de uma coisa que eu fiz, mas que não era eu.

– Aprendemos o que são bons modos, o jeito de falar e agir na frente dos outros em troca de aceitação. É sempre submissão, percebe? Mas os bons modos não são nossos, não somos nós agindo. Quando estamos sozinhos ou diante de alguém indefeso, aí o nós real aparece, que é bem diferente desse que envernizamos pra mostrar para os outros porque aprendemos com esses próprios outros que precisamos ser bonzinhos. Entendeu?

– Nem uma palavra.

– Quem é você, afinal, longe das etiquetas que foram te colando?

Ela não conseguiu sentir cheiro de álcool impregnado típico de quem acabou de beber, mas falar assim generalizante, universalizante, aprendemos, somos, blablá, era coisa de bêbado ou de chato, ou de bêbado e chato, ou de bêbado chato. Ele não queria que eu respondesse de verdade, né? Falar pra um estranho caído de paraquedas naquele ônibus quase vazio.

– Eu já me arrependi.

E tinha mesmo se arrependido. Mas o que não disse é que mesmo arrependida voltava a agir daquele jeito.

– O problema é que, mesmo arrependida, eu volto a agir daquele jeito. Falando com um bêbado da quinta série. Que fosse um daqueles que esquecem no dia seguinte.

– Quem é você? A arrependida ou a que volta a agredir?

– Sempre fui boa filha.

– Qual o problema da maldade? Você é boa pra quem? Pra você é que não. – A maldade faz os outros sofrerem, e eu também sofro.

– Sempre pelos outros é que se sofre. Aceitar a maldade já elimina um desses sofrimentos aí. Pensa a birra de uma criança, que esperneia porque quer alguma coisa. Se ela não tivesse depois sofrido tanta pressão pra ser boa, teria trinta anos com a mesma impulsividade, lutando de todas as formas para conseguir o que quer. E isso incluiria até matar e trepar com a mãe. Sem culpa, sem sofrimento.

– Esse ser encontraria outros seres querendo satisfazer as vontades também. Ia ser guerra e pancadaria.

– E quem venceria? O mais forte, o mais apto, o que mais merecesse. Essa negociação só gera cansaço e pessoas frustradas divididas entre ser boazinha e abafar os desejos reais, e isso só faz o desejo real ser esquecido ou, pior, virar desespero, um desespero que a gente nem desconfia de onde vem. Se é para todos ficarem doentes, é melhor os mais fortes eliminarem os mais fracos. Os mais fracos não estariam aí para sofrer e os mais fortes estariam satisfeitos.

– Então você defende o ladrão que roubou e bateu na minha mãe?

– Ele logo encontra alguém mais forte, leva um tiro na cabeça e deu. Quem pensa superficialmente pode achar cruel matar um ladrãozinho, se não quiser ser cruel, juro, é só matar, rápido, a pessoa nem vê e daí nem sofre, mas se não matar vai ser pior, eles se proliferam e a natureza se corrompe, como já está corrompida, aí muito mais gente vai morrer. Se bem que eu nem acho ruim.

– Tem gente fraca que é mais inteligente.

– Os verdadeiramente inteligentes vão buscar ser fortes. Inteligência é uma parada muito vaga, a força não, dá pra medir. E precisamos ter critério. Você é dessas que acha a diversidade linda? Aí vêm os caras e pregam satanismo, comunismo, aí só a gente é que tem que deixar? Eles destroem tudo, o certo.

– Se eles forem mais fortes, azar o teu, segundo a tua teoria.

– Aí é que é, é preciso ser mais forte que eles. Se a gente não elimina, como vai ser o futuro? É da eliminação de pragas que eu falo. Você pode achar desumano eliminar, estar ali matando com as próprias mãos, mas alguém precisa fazer isso para que o futuro exista, só com fortes, isso é o humano, não tem nada de desumano. Desumano é rótulo que te colam sem considerar as tuas vontades. Eliminar é palavra linda: serve para ladrões, comunistas, pretos, gays e todo mundo que desvia de um caminho estabelecido com critérios. Eliminar um gay é cruel, dizem, mas já pensou tua filha ali aparecendo com um zé ruela que nem vai conseguir fazer um filho e se conseguir já nasce condenado a ser mais um que vai condenar a humanidade? Só deixar de nascer uma criança que nasceria se o tipo não fosse gay já é uma morte.

– Você fala em morte e agora valoriza a vida.

– Morte e vida, cara e coroa, a moeda é uma só. Eu valorizo a minha vida. Preciso me amar antes de tudo, vi umas palestras no youtube que diziam bem isso. Imigrantes que se esparramam pelo chão do nosso território são fracos em países de fracos, ou seja, gente da pior espécie. Que futuro a humanidade tem com gente assim? E os pretos. Os pretos já não gostam da gente e, vai, a gente também não gosta deles. Se estiver me achando muito malvado, eu admito até, com ressalvas, apenas separar. O que custa separar? Cada um que fique com seu paraíso.

– Paraíso aqui ou depois da morte?

– Se acreditassem que existe paraíso depois da morte, não teriam pavor de morrer. Facilitava as coisas. A publicidade feita pros homens-bomba é perfeita. Morrem felizes, já pensou que legal morrer cheio de esperança? E com um monte de mulher esperando?

– Eu, tipo, não gosto de mulher.

– Então se alguma cruzar teu caminho, já sabe.

E ele contou que tinha religião, que adorava rituais e cultos, que isso rendia mulheres e, bem encaixado no esquema, dava pra faturar algum dinheiro. Era um merecedor, fazia o trabalho direito, estava conseguindo prosperar com grana e sexo. Era um cara sem rumo na vida que agora se encontrou.

– Eu era uma mulher encontrada na vida que agora me perdi.

Ela teve a rememoração que costuma ser também comemoração: lembrou rápido da infância, pai, padre, professor sempre dizendo o que ela devia fazer. Agora que tinha as rédeas na mão, percebia-se égua xucra que se escoiceava toda. Ele nunca tinha colocado em palavras de voz alta o que dizia agora, estava maravilhado de perceber como as coisas se encaixavam, irrefutáveis, uma verdade ganhando V maiúsculo, um fio de raciocínio que tecia trama lisa, sem rasgos. Ah, ahá, hahaha.

– Você não tem rédea nenhuma na mão, a rédea tá na mão das vozes de fora que entraram na tua cabeça. O mal deveria até ser banal. Ganhou aura de coisa ruim e é difícil tirar isso das pessoas. Eu me libertei. O mal e a morte são modos de preservar a vida de quem merece mais viver, seguindo a objetividade da força. O resto é cortina de fumaça. Para existir humanidade precisa morrer humano, precisa morrer gente. Quando há um terremoto ou algum caos no Japão, a mudança da paisagem se nota e choca, escandaliza. Aqui, pode cair bomba atômica que vamos olhar a paisagem e dizer, no máximo, aquele lugar não era plano antes?

– O que isso tem a ver?

– O que chamamos de caos pode ser a nova ordem.

– Você não é o Simão?

– Sim, achei que lembrasse.

E ela lembrou, agora.

– Você me deve uma boneca e um hamster.

Deter memória é forma de poder. Alguma porta de quarto escuro se abriu e de lá se projetou a boneca esquartejada e Bolinho, o hamster, morto depois de ter duas bombinhas enfiadas uma em cada orelha. Talvez ele devesse bem mais que uma boneca e um hamster, talvez devesse uma parte da infância que ela perdeu, ou teve despedaçada. Junto do bichinho, um desenho de Simão com uma figura meio humana, meio animal, também despedaçada, sem rosto, com pernas e pés-patas descoladas do corpo. Ela se perdeu na lembrança e quando veio à tona de novo, só disse:

– Você está sugerindo que eu devia fazer o quê com minha mãe?

– Crime sem castigo. Se isso render uma herança, por exemplo, e ela não sofrer, quem sai perdendo? Ninguém. Que fácil inventar uma morte natural. Você só sai perdendo se quiser, se ficar se culpando, só que aí não é mais você, e sim as vozes de dentro da tua cabeça que entraram e você deixou. Hora da expulsão, da excomunhão, do exorcismo, arranca isso. A culpa é a pior das punições, mas por causa da voz dos outros da tua cabeça. Ouço muitas vozes, estão hoje bem domesticadas, às suas ordens, que elas dizem. Você fica chocada por saber que a Guerra de Troia matou um monte de gente? Não. Que as cruzadas mataram um monte de gente? Não. O que é uma pessoa? Só porque é próxima? Meu dedo, olha aqui, visto assim de perto, parece maior do que as árvores lá fora, mas é menor. Bem menor. Ilusão criada por nós mesmos, se deixamos os outros darem as cartas, lá fora e aqui dentro. É preciso coragem para se desvencilhar, só isso para você deixar de ser encilhada pela égua xucra que te domina e te faz cair. Se se deixar domar, você será uma fraca, e os fracos, já viu. Nada disso tira a nossa humanidade. Ao contrário, liberta o humano verdadeiro. Vê como sou humano: quer poesia, eu faço: “quero ser como os pássaros / livre / para cagar na cabeça / de quem se arrasta pelo chão”.

Só barulho de pneus e motor. O resto virou silêncio. A frequência dos olhos piscando é que foi maior, mas estava no escuro, ninguém percebeu, sequer ela mesma. Simão em êxtase não a olhava mais, curtia um gozo dentro de si, sentia-se pela primeira vez ele próprio, tinha passado pelo próprio exorcismo do outro, os olhos curtos não chegavam ao nariz. A voz saiu do vazio para o vazio, em tom de prece vagarosa.

– O primado da força e o ocaso da lei, da lei legal, aquela dos olhos vistos, aquela que os olhos leem, e também da lei talhada dentro, que não precisa ser enunciada ou escrita, que saltou do mundo de fora e foi se alojar dentro. O poder de uma esponja com detergente e a lei vai se apagando com o antídoto, antídoto feito para ir contra os dados, também os de tabuleiro, e contra o que foi dado por alguma lei da nossa infância ancestral. Agressividade não é exceção, amar é mais raro que armar. E a obrigação de amar, que não vem de nós mas dessa lei fora de nós, tem nos levado aonde? Ao reino da culpa, só. E o mundo nessa merda, cheio de gente fraca.

Que intimidar ajudava, mas não resolvia.

Quem tinha dito isso? No escuro, com o ônibus sacolejando, a voz não saía de uma boca precisa, sacolejava junto, deslocava-se descolando-se de todas as bocas para todos os ouvidos, uma sociedade de fortes e merecedores ecoava e inscrevia uma legenda para a imagem de agora, o ônibus mais iluminado pelas luzes de uma cidade lá fora, pedintes de corpos rasgados costurados por cobertores, o sofrimento dessa gente agarrada à vida como o cão a um osso descarnado e seco. Ela não sabia se estava sendo iluminada ou escurecida pelas palavras do louco da quinta série, os intervalos entre um poste e outro a anoitecer a noite e de novo picos de luz resistindo à escuridão, a luz sempre a empurrar a sombra para detrás das hastes que a enfrentam.

Quando a cidade ficou para trás, o ônibus mergulhou outra vez no breu, agora é que tudo ficava nítido do lado de dentro. Preferia não fazer.

Preferiria não fazer, ela pensou.

– Prefiro não fazer, ela disse.

Ele não entendeu. Também sequer ouviu.