Desde o boom da literatura latino-americana dos anos 60/70, não se via tanto interesse por ficção hispânica como hoje em dia. Só entre autores correpresentados pela VB&M, estão se tornando conhecidas do leitor brasileiro a argentina Ariana Harwicz, com dois romances competentemente publicados pela Instante este ano, a mexicana Fernanda Melchor, autora do poderoso TEMPORADA DE FURACÕES, e a colombiana Juli Delgado Lopera, com FEBRE TROPICAL, as duas últimas a sair em 2021. Mais: o romance de Melchor marca a estreia da Tortilla, clube de livros exclusivamente dedicado à literatura hispânica, rica parceria e radiante proposta de Silvia Naschenveng, criadora da Mundaréu, e Nathan Magalhães, da Moinhos. Silvia CONVERSA COM (A) GENTE sobre esse surpreendente fenômeno de gosto literário, que parece refletir reflexões e atitudes políticas do novo milênio, sobre seu encantador empreendimento com Nathan e ainda sobre o magnífico livro de Melchor, original e pungente denúncia da violência patriarcal no México profundo.
VB&M: Passado o boom latino-americano dos anos 60 e 70, tornou-se proverbial no mercado do livro o desinteresse mútuo de hispânicos e brasileiros por suas respectivas produções literárias. Isso está mudando? Como e por quê?
SN: Concordo com o diagnóstico. Depois de um interesse e identificação com a América Latina nos anos 1960, 1970, houve um afastamento que chegou até à recusa, à negação. Talvez pela derrocada democrática na América Latina, consolidada nos anos 1970, pela depressão econômica na região nos anos 1980, fato é que, a partir dos neoliberais anos 1990, falar em América Latina era trazer à baila um parente incômodo. O mesmo ocorreu também em relação ao nosso próprio cinema e literatura (quão triste é isso, não nos encontrarmos nas nossas próprias manifestações culturais? Quanto há de baixa autoestima nisso?).
Bom, de lá para cá, se as esperanças dos anos 1960 viraram um retrato na parede, as dos anos 1990, de natureza bem diferente, também não se concretizaram. Acho que podemos agora voltar ao diálogo, ao reconhecimento e às descobertas mútuas.
Por outro lado, em termos de oferta no mercado editorial, mudamos muito nos últimos anos, especialmente na última década. Hoje temos muitas pequenas editoras independentes que estão à caça de livros interessantes, com o perfil de seu público específico. Nós, pequenos, não podemos nos concentrar e concorrer pelos últimos grandes sucessos do mercado norte-americano ou pelos livros canônicos sempre em voga. Nós temos de apostar no novo e ressuscitar belos cadáveres.
VB&M: Já se podem ver bem sucedidos lançamentos brasileiros de uma forte literatura feminina latino-americana, que explora os aspectos mais dolorosos da condição da mulher, como na obra da argentina Ariana Harwicz, da Instante. Sua Tortilla, clube de livros dedicado à literatura hispânica, começará com a notável mexicana Fernanda Melchor, de TEMPORADA DE FURACÕES. Na retomada brasileira do que fazem os vizinhos, os escritores terão vez, ou o foco é exclusivamente a ficção das autoras hispânicas?
SN: Parece mesmo haver uma geração especial de autoras latino-americanas, são vários exemplos, de diferentes países no continente. E elas terão um enorme espaço na Tortilla, a começar pela Fernanda Melchor. Mas não há exclusividade, aparecerão autores, e de outras gerações também.
Gosto particularmente dessa mescla de contemporâneos e gerações passadas, de acompanhar de perto o que está acontecendo sem esquecer o percurso que nos trouxe até aqui. E gosto de long-sellers, de livros permanentemente no catálogo e à vista.
VB&M: O que levou a Mundaréu a se unir com a Moinhos para a criação da Tortilla? Como funcionará a parceria em termos de plano de negócio?
SN: O Nathan da Moinhos tem sido meu interlocutor frequente há um bom tempo. Sempre trocamos impressões sobre o mercado editorial, discutimos literatura e começamos a buscar soluções para editoras pequenas como as nossas. Nessas conversas delineamos o clube, especialmente pela coincidência de nos interessarmos e publicarmos latino-americanos. É uma parceria de afinidades e estamos dividindo todas as funções e trabalhos. A ideia é de que os títulos do clube sejam metade da Moinhos e a outra, da Mundaréu – isso até crescermos e podermos convidar alguns títulos de outras editoras.
VB&M: Tortilla dará a largada com o romance de Melchor, eleito pelo New York Times um dos 100 livros notáveis de 2020. Quais os elementos da ficção de Melchor que a tornam tão especial?
SN: “Temporada de furacões” foi eleito como um dos melhores de 2020 pelo The New York Times e pelo The Guardian, excelente jornal inglês. E também teve boa repercussão no México e na Espanha, onde foi lançado em 2017.
Logo me encantei pelo livro por sua força narrativa, que é reforçada pela estrutura de capítulos dedicados a cada personagem e seus pontos de vista, literalmente despejados num fluxo sem pausa nem filtro. E pela forma como Melchor trata da realidade social mexicana sem deixar a subjetividade de lado, abordando temas íntimos de forma crua mas detida, que evita julgamentos e lugares comuns. O feminismo, por exemplo, não é discutido a partir das vivências da autora, é uma urgência de saúde pública demonstrada com casos bem pessoais.
É um livro excepcional e estou muito contente com a curiosidade e a expectativa com que muitos leitores o têm aguardado. É uma estreia fantástica para a Tortilla.