PRESENÇA QUE VALE MAIS DO QUE CONTRATOS

Narrativas e Depoimentos publica crônica de Anna Luiza Cardoso sobre a participação na feira de Londres, primeiro evento presencial de que a VB&M participa desde o início da pandemia. Ela comenta a sensação geral de estranheza e euforia que tomou conta da feira, os livros que mais chamaram a atenção ao longo do evento e a percepção de que a mera condição de estar presente foi mais importante do que qualquer contrato fechado.

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Durante um longo período no auge da pandemia, houve um sentimento geral de que as feiras literárias presenciais pudessem não mais voltar, ao menos não como eram antes. Não se sabia quando se poderia viajar novamente, encontrar pessoas, quem dirá reunir num só lugar milhares de profissionais vindos do mundo todo para realizar dezenas de encontros diários durante dias seguidos. A ideia de uma feira presencial parecia uma utopia surrealista praticamente inconcebível e a realidade dos eventos virtuais se impunha como solução possível mas um tanto desoladora. A impossibilidade do encontro presencial tornou as temporadas de feiras um verdadeiro pesadelo para os envolvidos, deixando muito claro que não é apenas de negócios fechados que vive uma indústria. Dois anos depois, a primeira edição in loco da feira de Londres mostrou que não só os encontros voltaram, como estávamos todos sedentos por eles.

Foram muitas as estranhezas da experiência; a primeira viagem internacional, a infinita papelada necessária para as diferentes imigrações, a fila quilométrica para checagem de vacina na entrada da feira, a insegurança quanto ao desuso de máscaras e a incerteza sobre a real segurança de estarmos em tantos reunidos naquele enorme pavilhão. Fora as festas e pubs sempre cheios e muitas vezes sem qualquer ventilação, mas estes seria hipócrita dizer que os tenha estranhado. Mea culpa. Na outra ponta da estranheza, que ao fim dos fatos durou apenas os primeiros momentos, o sentimento geral era de êxtase. Pelo que diziam os europeus, foi a primeira feira de verdade. E é verdade, faltaram ainda muitos rostos e nacionalidades conhecidos e tradicionais, a maioria ausente pela pandemia ou pela guerra na Ucrânia, mas a sensação era de que, sim, aquilo estava acontecendo de verdade. E estava quase todo mundo lá.

Com a pandemia controlada em praticamente todos os países presentes, o assunto majoritário nos pavilhões de Olympia foi a invasão russa à Ucrânia, que afeta e envolve direta ou quase diretamente a grande maioria dos que ali estavam. Inka Ihmels, gerente de direitos estrangeiros da Aufbau, que precisou cancelar sua ida a Londres aos 45 do segundo tempo porque testou positivo às vésperas da viagem, disse que um mês de invasão russa na Ucrânia causou mais danos ao mercado editorial alemão do que dois anos de pandemia com meses de lockdown no meio. Nossas coagentes polonesas e romenas não puderam ir à feira pois seus países estão em estado de calamidade, fazendo fronteira com a Ucrânia e sendo destino de milhões de refugiados. A complexa relação histórica entre Rússia e Ucrânia é tema sensível e presente em diversos níveis na literatura de parte importante da Europa, daí a diversidade de obras de ficção e não ficção disponíveis sobre o assunto. Algumas recentes, recém ou a ser lançadas, por triste coincidência do destino, outras repescadas de catálogos anteriores e trazidas à tona dadas as circunstâncias.

Só dos nossos clientes, chamaram-nos muita atenção os romances YOUR PRESENCE IS MANDATORY, estreia da autora ucrano-americana Sasha Vasilyuk, que acompanha uma família ucraniana da Segunda Guerra Mundial aos dias atuais, tendo como fio condutor seu patriarca, herói de guerra com um grande segredo que afeta toda a família e reflete as vicissitudes das relações entre Rússia e Ucrânia; BLAUWAL DER ERINNERUNG (A baleia azul da memória, em tradução livre), de Tanja Maljartschuk, eleito melhor romance ucraniano pela BBC em 2016, história de uma mulher que mergulha num processo de depressão e busca refúgio na história de um importante filósofo e político ucraniano, relegado ao ostracismo, que dedicou a vida à luta pela independência de seu país na primeira metade do século XX, quando o assunto ainda era impensável; e SIE KAM AUS MARIUPOL (Ela veio de Mariupol, em tradução livre), de Natascha Wodin, reconstrução literária da história da mãe da autora, forçada a deixar a Ucrânia com sua família durante a ocupação nazista em 1943 e levada para um campo de trabalho forçado na Alemanha, onde a autora nasceu dois anos depois, em 1945. Na não ficção, nos interessaram especialmente TEARS OVER RUSSIA, de Lisa Brahin Weinblatt, extensa investigação sobre os pogroms antissemitas soviéticos, onde de cem a 250 mil judeus foram assassinados entre 1917 e 1921, vinte anos antes do início do Holocausto; e LAS NOCHES RUSAS, do autor uruguaio Roberto Echavarren, misto de diário de viagem e ensaio histórico oriundo de diversas entrevistas feitas pelo autor com sobreviventes da Batalha de Leningrado e combatentes do front russo na Segunda Guerra Mundial.

Londres também foi uma boa feira para a literatura brasileira, que tem voltado a receber a atenção dos estrangeiros depois de alguns sucessos nos último anos, como A VIDA INVISÍVEL DE EURÍDICE GUSMÃO, de Martha Batalha, cujo filme venceu o prêmio Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2019; o best e long seller Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, que devolveu aos editores brasileiros a confiança na potência de nossa ficção; e a figuração da edição inglesa de Marrom e amarelo, de Paulo Scott, entre os finalistas do International Man Booker Prize deste ano. A MALDIÇÃO DAS FLORES, estreia da escritora e roteirista Angélica Lopes na literatura adulta, história de um grupo de mulheres rendeiras que enfrenta a sociedade violenta e patriarcal do interior de Pernambuco em 1918, a sair no Brasil pela Planeta em maio, causou frisson entre scouts e tradutores. Foi vendido em preempt para a Mondadori na Itália e acaba de receber uma excelente oferta portuguesa. O tradutor inglês Rahul Berry, que acaba de finalizar para a Pushkin Vertigo a sensacional tradução de NADA VAI ACONTECER COM VOCÊ, de Simone Campos, outro romance que chamou muita atenção na feira, fez um report incontestável de A MALDIÇÃO DAS FLORES. Leitor militante pela tradução da obra de José J. Veiga para o inglês, Rahul agora lerá MABOQUE, de Tina Vieira, publicado pela pequena Quelônio em 2020 e finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte, uma história de reconciliação com o passado que está entre as leituras mais potentes que fiz nos últimos tempos.

Para além dos livros em si, as feiras presenciais são muito importantes para o agente literário, que como grande intermediário e facilitador da chegada das obras aos leitores de todo o mundo, é quem mais depende das relações estabelecidas nas feiras. O encontro presencial faz toda a diferença tanto para a transmissão do entusiasmo com os livros que se está representando, quanto para a criação de laços com os novos e antigos clientes. E por falar em novos clientes, voltamos de Londres trazendo a representação de duas agências espetaculares do mercado europeu, a francesa SFSG, fundada por Magalie Delobelle, e a italiana PNLA, de Piergiorgio Nicolazzini, esta responsável pela minha atual leitura, o clássico contemporâneo L’ARTE DELLA GIOIA, obra prima de Goliarda Sapienza, originalmente publicada dois anos depois de sua morte, em 1998, traduzida para dezenas de idiomas e incompreensivelmente nunca publicada em língua portuguesa, equívoco que trataremos de resolver o mais rapidamente.

Apesar da extensa lista de obras sensacionais que apresentamos ou nos foram apresentadas na feira, não foram exatamente os livros os protagonistas desta última edição de Londres. Eles são a base de todos aqueles encontros e a razão de existência do evento em si, e falar sobre eles é falar sobre as vozes e narrativas de todo um mundo em profunda transformação. Mas pela primeira vez em meus quase dez anos de feiras, a mera condição de estarmos ali presentes, Miguel e eu, conhecendo ou reencontrando aquelas pessoas, foi mais importante do que qualquer pitch ou contrato fechado. E foram muitos.