OJIICHAN

Esta semana contamos com a valiosa contribuição de Oscar Nakasato para a coluna Narrativas de nosso blog. O premiado autor de NIHONJIN (Benvirá), vencedor do Jabuti de melhor romance em 2011, e DOIS (Tordesilhas), compartilha conosco o primeiro capítulo de seu próximo livro, ainda em fase de escrita, que se chamará OJIICHAN_ avô em japonês_ e seguirá a reflexão do autor sobre o denso ambiente nipobrasileiro, um universo existencial e cultural a ser desbravado pela maioria dos leitores tanto literariamente como em termos de desconhecimento prático de um importante naco de Brasil. NIHONJIN e DOIS são deslumbrantes, e OJIICHAN há de se provar tão maravilhoso quanto. No trecho, o encontro às escondidas do jovem Satoshi com sua amada, Maria Carolina.

OJIICHAN

Oscar Nakasato

Seu pai e sua mãe já haviam se recolhido há mais de uma hora. Satoshi também estava deitado na sua cama há bastante tempo, esperando e temendo o momento em que se encontraria com Maria Carolina e, considerando as suas expectativas, perderia a virgindade. O silêncio era quase absoluto, exceto pelo tic tac do relógio da parede da sala. Quando ele tocou as badaladas que indicavam faltar quinze minutos para as dez horas, levantou-se, calçou os chinelos gastos de borracha e trocou o calção e a camiseta de dormir por uma calça de tergal de passeio e uma camisa de linho de manga curta, com listras. Depois foi à cozinha, tateou a mesa na escuridão e abriu a gaveta, de onde retirou um farolete. Em seguida se dirigiu à porta da sala, a única da casa que era fechada à chave. Ao abri-la, ouviu um rangido seco e áspero. Esperou alguns instantes, com receio de que o seu pai, que tinha um sono leve, despertasse e fosse à sala averiguar o que ocorria. Passados alguns minutos, percebendo que ele não acordara, esgueirou-se pela porta entreaberta, fechou-a com cuidado para que o barulho fosse menor que o anterior e a trancou com chave.

A lua minguante lançava uma luz tênue sobre o sítio. Satoshi empurrou para a frente o dispositivo do farolete, mas ele não acendeu. Chacoalhou-o, puxou o pequeno botão para trás e, depois, impulsionou-o novamente, mas a lanterna continuou apagada. Porcaria, sussurrou. Então, segurando o instrumento inútil, caminhou com cuidado para não tropeçar em alguma pedra, para não sujar os pés com o pó da terra avermelhada. Olhava ora para a frente, ora para baixo. Do pomar de laranjeiras, caquizeiros e jabuticabeiras, veio o piado de uma coruja. Satoshi se retesou, arrepiado. Guardou o farolete no bolso da calça.

Chegou ao terreirão de cimento, que ficava a pouco mais de cem metros da casa. Percorreu metade de sua extensão e alcançou a velha e acanhada ponte de madeira que dava acesso à tulha. Atravessou-a cuidadosamente, segurando com a mão direita o áspero corrimão. Uma farpa de madeira machucou a sua pele, e a leve dor o fez parar por um instante. Levou a palma da mão à boca e sentiu o gosto de sangue, embora o corte fosse mínimo. Seguiu adiante, sem segurar mais o corrimão. As duas folhas da porta da tulha estavam entreabertas, e ele adentrou de lado, sem precisar escancará-las.

Maria Carolina esperava Satoshi na plataforma da tulha, de onde os grãos de café eram lançados no depósito. Ele viu o vulto em meio à escuridão. Aproximou-se. Seu pai, sua mãe?, perguntou num sussurro. Estão dormindo, ela respondeu com a voz ainda mais baixa, Deus me livre se sabem que estou aqui, eles me matam. Seu irmão?, continuou interrogando, e ela disse que dormia como uma pedra. Satoshi pensou na casa de colonos que habitavam, uma casa de madeira envelhecida, com tábuas já começando a apodrecer na base, uma sequência de sala/cozinha e dois quartos. Os dormitórios eram ligados por uma passagem fechada apenas com uma cortina. Para se chegar ao segundo, os pais passavam pelo primeiro, onde dormiam Maria Carolina e o irmão. O cuidado que ela deve ter tomado para se movimentar na escuridão sem fazer barulho, pensou Satoshi, e de repente sentiu uma grande compaixão. Queria vê-la, queria ter o farolete funcionando para iluminar o seu rosto por um instante e contemplar os seus olhos amarronzados, brilhantes, o rosto acanelado, os seus cabelos castanhos, quase pretos, em ondas leves, deslizando até os ombros. Se pudesse vê-la, a sua beleza o alegraria e lhe diria que estava tudo bem. Esticou a mão para tocar a sua face e sentiu a maciez de sua pele. Deslizou a mão até o queixo arredondado, percorreu os lábios entreabertos com a ponta do dedo indicador e forçou um pouco para enfiá-lo. Os dentes ofereceram resistência por um instante, mas logo se abriram, e ele pôde penetrar meio centímetro. Ela mordeu levemente o dedo, e ele sentiu a pressão como se fosse uma carícia. Maria Carolina sussurrou, Satoshi, e a voz rouca do sussurro parecia pedir, primeiro, que fosse embora, mas logo ele entendeu que era para prosseguir, para ser mais ousado. Então fez um pequeno movimento de vai-e-vem com o dedo. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Depois a pegou pela mão e a conduziu até a escada vertical que dava acesso ao reservatório. Cuidado, disse Satoshi, encaminhando-a para que descesse primeiro, de frente para a parede, as costas voltadas para o grande vão. Ela escorregou no primeiro degrau de madeira. Ele a segurou para que não caísse. Quando Maria Carolina chegou lá embaixo, desceu rápido, pois estava acostumado com aquela escada.

Uma camada de grãos de café equivalente à espessura de dois colchões forrava o piso. A gente devia ter deixado os chinelos lá em cima, observou Satoshi ao sentir os pés afundando, o calor dos grãos os aquecendo. Maria Carolina ficou quieta. Ele pegou, então, as suas mãos, e se abaixaram numa sincronia que parecia haver sido ensaiada. Ficaram de joelhos um diante do outro, de mãos dadas. Abraçaram-se. Depois, lentamente, deitaram-se sobre os grãos.