O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO, WAGNER BARREIRA?

Wagner Barreira, autor de DEMERARA (Instante) e LAMPIÃO E MARIA BONITA: UMA HISTÓRIA DE AMOR E BALAS (Planeta), convidado a comentar sua última leitura, escreveu uma belíssima resenha do romance documental “M, o filho do século”, de Antonio Scurati, vencedor do prestigioso prêmio italiano Strega no ano passado e publicado por aqui pela Intrínseca. Para o autor, trata-se de uma obra de leitura obrigatória que faz refletir sobre a incompreensível força de atração do fascismo.

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Atravessei as 812 páginas de M, o Filho do Século com o fôlego de corredor de 100 metros rasos, lamentando cada momento que passei longe do livro. O italiano Antonio Scurati, que levou o Prêmio Strega pela obra em 2019, trata da gênese do fascismo e da ascensão de Benito Mussolini ao poder na Itália entre os anos 1910 e 1920, ora contado em primeira pessoa, pela voz do Duce, ora com o narrador colado no protagonista, em seus aliados ou nos líderes socialistas. “Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor”, Scurati alerta o leitor na abertura do livro. O resultado é um thriller político que não se desliga da realidade em nenhum momento.

Os paralelos com o Brasil de hoje são inevitáveis – e urgentes. A Itália, apesar de vitoriosa na Primeira Guerra, foi excluída do Tratado de Versalhes, que redefiniu o mapa da Europa a partir de 1919. Havia no país uma crise econômica e moral, a classe política afastada dos anseios da população, a oposição de esquerda dividida e uma multidão de veteranos de guerra deslocados nas grandes cidades, inconformados como o “ganhou, mas não levou”. Parte deles, os “arditi”, a tropa de assalto italiana, formaram a vanguarda do fascismo. Eram famosos por se organizarem em milícias, pela violência e pelo descompromisso com o que hoje chamamos de direitos humanos.

O líder socialista Giacomo Matteotti foi sequestrado, espancado até a morte e enterrado em cova rasa por milicianos. O desaparecimento de gente de esquerda, tal como Marielle Franco no Brasil de nossos tempos, virou o modus operandi dos camisas negras. O fascismo emergiu pouco depois da vitória eleitoral da esquerda nas eleições parlamentares e sua fragmentação entre moderados e revolucionários, mas também pelo silêncio (por vezes adesão) de uma burguesia acomodada, que via Mussolini como o mal menor diante da oportunidade concreta da tomada de poder pelos socialistas, e de instituições amedrontadas – o exército inclusive –, como no caso da falta de reação do Estado a uma desajambrada e desorganizada Marcha sobre Roma que poderia ser esmagada antes de dar o primeiro passo.

Durante a leitura, à medida que os fascistas ganhavam corpo na vida italiana, me perguntava como uma região com mais de 2 mil anos de vida política, que gerou grandes imperadores, Maquiavel e Garibaldi, pôde se encantar com a extrema direita tosca e anti-intelectual de Mussolini e acreditar no resgate de um passado de glórias tocada por um ex-professor e jornalista que trocava de ideologia de acordo com a conjuntura.

Mas o mesmo saudosismo tortuoso se repete, como farsa, com os Estados Unidos de Donald “make America Great Again” Trump e com o Brasil sob Jair Bolsonaro, que encontra justeza na ditadura militar, nas pautas conservadoras que excluem negros, mulheres e homossexuais – e na postura contra a ciência, a universidade, o meio ambiente, a ignorância cristalizada no manejo da pandemia de covid-19. Talvez o que una essas realidades seja o rancor, o ressentimento de quem habita um mundo que deixou de ser seu e o observa atônito, diante do surgimento de novos valores, de modos diferentes de viver. Antonio Gramsci, ele mesmo preso durante o fascismo, afirmou que a crise “consiste no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Scurazi traz algumas respostas em M, o Filho do Século, leitura mais que obrigatória para tempos bicudos.

Wagner Barreira é autor de DEMERARA (Instante) e LAMPIÃO E MARIA BONITA: UMA HISTÓRIA DE AMOR E BALAS (Planeta).