Quem abre a semana do blog VB&M é Maurício Gomyde, autor de SURPREENDENTE! (Intrínseca) e O CIDADÃO DE BEM (Qualis), em lançamento esta semana, que divide conosco a recente leitura de CÃO MAIOR, duro mas maravilhoso romance de Alessandro Thomé publicado pela Telucazu.
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Recentemente, li CÃO MAIOR, de Alessandro Thomé, uma história de sufocamento de sonhos, como peixes arrancados de um rio ou tirados de um aquário e pisados. Uma criança abusada desde sempre por um não-pai, e a quem foi negado o direito de distinguir a violência e berrar contra ela. Gaslighting nu e cru, ao ponto de Pétria acreditar que seu não-pai lê seus pensamentos. Ficção? Sim e não. Sim, quando a habilidade de Alessandro Thomé aborda um tema árido de forma magistral e quase melódica. Não, quando crianças violadas (na maioria das vezes por familiares) precisam ouvir a palavra “assassina” berrada por defensores da família. Não, quando os mesmos defensores demonizam educação sexual nas escolas. Não, quando 54% das vítimas de estupro no Brasil são meninas de até 13 anos. Tudo isso em pleno século XXI.
“Pétria talvez não tivesse alma, e essa era sua maior benção”, a menina que sonha com estrelas e peixes e que encontra em Alfredinho um refúgio onde se perder. “Roubaram nossa vida, os malditos roubaram nossa vida”, diz o menino que encontra em Pétria o amor e a chance de recuperar o que lhe roubaram.
“O Diabo mora nos detalhes, Deus em todo o resto”. Talvez essa frase consiga traduzir um pouco do sentimento que tive pela trama. Digo “um pouco”, pois acabo de ler a última página e acho que para se compreender perfeitamente uma história é prudente aguardar o tempo de ela amadurecer no peito, até revelar as notas e os sabores escondidos, tal qual uma cachaça numa velha garrafa.
Lírico e bruto. Doce e desconfortável. Estranho e perfeitamente inteligível. Com diálogos e cenas econômicos e banhados em multissignificados, a habilidade de Alessandro Thomé em dizer muito mais com muito menos (algo dificílimo!) revela-se poderosa. CÃO MAIOR é como uma cachaça forte e doce, das que havia muito eu não experimentava.