O POPULISMO REACIONÁRIO DE BOLSONARO E DE TRUMP

O jornalista e analista político Pedro Doria, autor de FASCISMO À BRASILEIRA (Planeta) e editor do influente Meio, Conversa Com (A)Gente sobre o que há em comum neste momento histórico entre Brasil e EUA: a ascensão da extrema-direita, o movimento pendular da democracia e a necessidade de uma composição moderada de centro-esquerda para derrotar o reacionarismo no poder. Em seu livro sobre o movimento fascista brasileiro dos anos 30 encarnado no Integralismo de Plínio Salgado, Doria demonstra por que o uso do conceito de fascismo pode ser pouco útil para a compreensão dos desafios postos à sociedade atual. Ele aponta para a urgência de o Brasil entender como chegou a Jair Bolsonaro, trajetória que está reconstituindo e será o tema central de seu próximo livro.

VB&M: Trumpismo é fascismo à americana?

PD: Nem todo populismo autoritário de extrema-direita é necessariamente fascista. O que fez do fascismo dos anos 1930 único é uma aparente contradição: é reacionário e revolucionário ao mesmo tempo. Reacionário por desejar um retorno a um passado que é mais fantasiado, idealizado, do que real. Revolucionário por tentar impor um sistema radicalmente novo, um corte abrupto perante o regime atual.

O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, é um reacionário — seu Brasil ideal não é urbano, não é o industrial dos anos 1950-70, muito menos o eco-digital do século 21. É o Brasil do agronegócio e o Brasil no qual o homem entra no mato para se impor à natureza e torná-la riqueza enquanto, no meio do caminho, ‘civiliza’ os indígenas. Que Brasil é este? É a colônia do século 17, da cana de açúcar no Nordeste, e dos bandeirantes no Sudeste. Mas quando este ideário do Bolsonaro se encontra com o olavismo, que quer destruir tudo para erguer algo novo, que fantasia a iminência de uma revolta popular conservadora, aí dá a faísca fascista. Reacionários e revolucionários se encontram num mesmo pacote de ideias.

A que Estados Unidos Donald Trump sempre se refere? A uma América branca, com hierarquia étnica, também mais rural do que urbana. Uma América na qual negros se curvam perante a autoridade do Estado, através da polícia. Ele defende a bandeira confederada, que representa o lado derrotado na Guerra Civil. Este é o desenho do reacionarismo americano — aquele melhor representado pela Ku Klux Klan. Mas não tem o componente revolucionário.

Existem, é verdade, movimentos de supremacistas brancos que propõem uma nova revolução, uma secessão como a de 1860. Estes são revolucionários e podemos chama-los de fascistas. Trump acena para eles, mas não estão dentro do governo como o olavismo está no governo Bolsonaro.

VB&M: FASCISMO À BRASILEIRA reconstitui historicamente a trajetória da extrema-direita no Brasil. Nos Estados Unidos, onde residem as raízes históricas do fenômeno Donald Trump?

PD: O conflito político americano essencial está no debate entre Thomas Jefferson e Alexander Hamilton, na década de 1780. É o debate entre uma república centralizada num governo da União ou uma com o poder concentrado nos estados independentes. No fundo, a briga na época era simples: o Norte era mais populoso e tinha o potencial de enriquecer com a indústria. Jefferson temia que impusesse a Abolição da escravatura ao Sul. Esta tensão jamais se dissipou e continua presente. Está na origem da Guerra Civil, está na barbárie dos linchamentos de finais do século 19 e início do 20, está na tristeza do blues, na guinada do conservadorismo para o reacionarismo que o Partido Republicano tomou a partir dos anos 1970 — há uma distância imensa entre Reagan e Trump, mas a linha evolutiva é uma só. Séculos depois, os elementos dessa tensão continuam lá. É a distinta visão de mundo entre quem vive em zonas urbanas e em zonas rurais. É a implantação de uma ideologia essencialmente laica, o liberalismo, numa sociedade de raízes dedicadamente cristãs. E tudo isso gira num ambiente cultural em que as feridas da escravidão não estão sequer perto de terem sido cicatrizadas. A eleição de um presidente abertamente racista após a eleição do primeiro presidente negro não é acidental.

VB&M: Retomando as ideias desenvolvidas em seu último livro, por que é importante não caracterizar o bolsonarismo como um movimento fascista? Sem com isso atenuar – de maneira alguma – o caráter criminoso de muitas ações e declarações do presidente Bolsonaro e seus acólitos e seguidores.

PD: Porque limita a leitura do que representa o governo Bolsonaro. Como fascismo traz esta aura de ‘mal absoluto’, acaba tornando a conversa política maniqueísta. Não ajuda a compreender. O governo de Jair Bolsonaro é a mais grave ameaça à democracia brasileira desde o fim da Ditadura Militar. Compreendê-lo é fundamental para derrotá-lo nas urnas.

Há um componente que pode ser lido como fascista neste encontro da ideia de Brasil do homem Jair Bolsonaro com as ideias do escritor Olavo de Carvalho. Mas há outras correntes no governo. Por exemplo, o conservadorismo voltado para questões de sexualidade dos neopentecostais representado pela ministra Damares Alves. O capitalismo selvagem, que remete aos anos 1960-70, do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. O liberalismo radical, laissez-faire e sem dentes do ministro da Economia, Paulo Guedes – sem dentes, porque Bolsonaro não deixa Guedes fazer nada. Existe também aquele autoritarismo positivista militar, que lembra o espírito da ditadura, com sua vontade nacional-desenvolvimentista de fazer um grande plano centralizado em Brasília para desenvolver o Brasil. Esteve no governo, mas o abandonou, o neo-lacerdismo da Lava Jato, na figura do ex-ministro Sérgio Moro. Não estava, mas agora está, o pragmatismo fisiológico do Centrão. E, claro, além do reacionarismo, Bolsonaro traz ele próprio outro elemento para seu governo: esse espírito da pequena corrupção, que é tanto uma visão pouco ambiciosa quanto mesquinha, tão comum em políticos nos legislativos regionais Brasil afora.

Entender o governo Bolsonaro exige assimilar que ele atende a uma rede distinta de interesses que atrai tipos de eleitores diferentes. O médio empresário do agronegócio, que não tem tanto envolvimento com a cadeia de exportação, se sentirá atraído por Salles. Guedes encanta um certo perfil de investidores e empresários menos sofisticados. O voto amplamente conservador nas periferias urbanas presta atenção no discurso de Damares. Para o típico conservador brasileiro, em seu imaginário, o uniforme militar transmite seriedade.

VB&M: O Brasil espelha os EUA? Para derrotar Bolsonaro em 2022, precisaremos de uma chapa presidencial implacavelmente crítica ao governo atual mas moderada em suas propostas, estilo e base partidária?

PD: Acredito que sim. Democracias oscilam por movimentos pendulares — da esquerda para a direita e de volta para a esquerda. Passamos por governos com pautas socialmente progressistas desde a eleição de Fernando Henrique. Agora estamos do outro lado. Também a história da República brasileira oscila por movimentos pendulares — de regimes democráticos a regimes autoritários. Embora não tenhamos entrado numa ditadura, temos um presidente autoritário. Esta é uma vantagem: podemos tirá-lo no voto.

A grande qualidade de Joe Biden, como candidato, é não ser um candidato que cause repulsa ao eleitor médio de Donald Trump. O eleitor radicalizado não dá para tirar, mas é preciso tirar eleitores médios — e ele tem a cara de um típico presidente americano. Um homem mais velho, branco e com fala mansa. É capaz de conversar com a esquerda, mas o eleitor americano o conhece há tanto tempo que sabe que ele será, essencialmente, um moderado. Tem uma carreira de décadas no Senado, há também décadas ocupando a presidência de comissões importantes, portanto com muita experiência de negociação parlamentar num momento em que o nó difícil de resolver é justamente a relação entre uma Casa Branca democrata e um Senado republicano.

Tanto eleitoralmente quanto para o governo, ele tem o perfil ideal.

Este padrão pode se repetir no Brasil? Não sabemos como será o ano de 2021. Se haverá uma crise econômica profunda, se Bolsonaro conseguirá manter o auxílio emergencial que mantem alta sua popularidade, se seus filhos escaparão das investigações sobre corrupção. Se o presidente chegar inteiro para a eleição de 2022, o candidato ideal é um que seja capaz de capturar votos da direita e que não cause repulsa na esquerda. Hoje, me parece, um político experiente é melhor.

VB&M: Dá para escrever livros em meio a esse barulho todo? Pode comentar seu próximo projeto e que metodologia você está desenvolvendo para criar sua obra literária de não-ficção enquanto edita o Meio e comenta o noticiário político minuto a minuto(afinal é esse o ritmo hoje em dia)?

PD: Dá, mas é difícil. Eu sou um desorganizado. Mas, ao mesmo tempo, escrever os livros me ajuda a pensar. Me obriga a estudar a história do Brasil. Meu próximo livro tenta, justamente, entender por que tipo de transformação o país passou nestas últimas décadas para chegarmos até a um Bolsonaro. É muito complementar.