O MEDO DO FUTURO NO EXÍLIO

Narrativas e Depoimentos traz um capítulo de A SOLIDÃO DO AMANHÃ, novo romance, ainda em progresso, de Henrique Schneider, escritor premiado e consagrado, que está vindo somar na carteira de autores-clientes da VB&M. O romance comporá uma Trilogia da Ditadura iniciada com SETENTA, que tem a Tortura como tema, foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura e publicado pela Não Editora, selo da Dublinense. A SOLIDÃO DO AMANHÃ trata do Exílio, não pela perspectiva da vivência fora do país, mas da tensa travessia até a fronteira Brasil-Uruguai, e será seguido por uma terceira narrativa, que abordará a Censura. Em A SOLIDÃO DO AMANHÃ, o protagonista, Fernando, 21 anos, militante de base do movimento estudantil na Porto Alegre de 1972, é preso, mas acaba solto pela polícia e, para sua segurança e a de seus companheiros, deve partir para o exílio. A longa viagem da capital gaúcha até a minúscula Aceguá, na divisa seca com o Uruguai, onde um colaborador da resistência o aguarda para levá-lo ao país vizinho, é permeada por medos, incertezas e pelas memórias do que o levou até ali, no banco do carona da Variant de seu tio Jorge Augusto, um pacato e conservador funcionário público, na verdade, pai de seu amigo de infância, que, para participar da perigosa aventura de conduzir Fernando ao desconhecido, só lhe pede a promessa de não falar de política durante o trajeto.

Além deste romance em progresso e de SETENTA, que sairá este ano no Egito e na Itália, Henrique Schneider tem mais um belo inédito, que acaba de ganhar o ponto final, e uma vasta obra literária adulta e juvenil, entre romances e contos, que já angariou imensos elogios de Paulo Rónai e Heloisa Jahn, como jurados em premiações conquistadas, e do escritor e cineasta Tabajara Ruas, entre outros nomes. Com o romance CONTRAMÃO (Bertrand Brasil), Schneider foi finalista do Prêmio Jabuti de 2008.

A estrada estava tranquila, com pouco movimento, e a Variant, sempre cautelosa, viajava em boa marcha o tempo inteiro. Haviam parado numa lanchonete próxima a Butiá para tomar uma xícara de café e comprar dois pacotes de bolachas. Assim, era pouco mais de meio-dia quando, com certa fome, chegaram em Pantano Grande. Jorge Augusto, interrompendo o silêncio que já se estendia por alguns quilômetros, disse a Fernando que era o momento de fazer nova parada, esticar as pernas, tomar um café para espantar o cansaço, comer algo, fazer xixi e lavar-se um pouco do peso da viagem, encher o tanque do carro, limpar o parabrisa dos insetos esmagados.

“Talvez seja melhor eu não descer.” – comentou Fernando. A cada tempo, uma onda nova de angústia o envolvia, e cada quilômetro avançado na imensidão plana e verde lhe dava mais e mais certeza de que não eram apenas Porto Alegre e seu cotidiano que se afastavam, mas sim a vida e a luta de até então, e que agora o desconhecido era um jogo em que mal conhecia as peças. E quando um carro permanecia por mais tempo atrás da Variant, ou quando qualquer sobressalto ou detalhe o fazia lembrar ainda mais que não era uma viagem de passeio, então toda a ansiedade parecia redobrar. Tenho só vinte e um anos, pensava, e estou sendo obrigado a sair do país do qual nunca quis sair. O seu país – um embrulho no estômago.

“Bobagem, guri! Não te preocupa. Só vamos tomar um café, comer algo e já já seguimos viagem. Ou tu acha que aguenta até o fim sem tirar a água do joelho?” – perguntou Jorge, rindo – aquele tipo de expressão era o máximo de informalidade a que se permitia. – “E mais: se alguém tiver que desconfiar, vai desconfiar muito mais te vendo parado dentro do carro.”

Após abastecer a Variant, enquanto iam em direção ao restaurante logo ao lado, Jorge Augusto teve vontade de reclamar do absurdo que estava o preço da gasolina. Lembrou, no entanto, que havia pedido a Fernando para não falarem de política e resolveu guardar o comentário para si.

Quando estacionaram, Fernando pensou novamente em ficar no carro. Muita gente, tantas ameaças. Mas Jorge Augusto não lhe deu chance de negar:

“Desce, guri. Não me diz que tu não precisa ir no banheiro!”

E desceram ambos.

Entraram na lanchonete, olharam o que estava exposto no balcão e acharam melhor comer apenas um lanche rápido. Jorge Augusto estava pronto a quebrar sua burocrática rotina de refeições. Comemos alguma coisa leve e depois tocamos viagem até que a fome nos pare novamente, sugeriu ele, e Fernando achou que era uma boa ideia – quanto menos parassem, melhor. Jorge pediu uma taça de café com leite e o pastel de carne; Fernando, um café preto e uma torrada completa. Depois, meio que de sobremesa, comeria uma rosquinha doce.

A atendente pediu-lhes que aguardassem na mesa, já levaria os lanches. Fernando escolheu um lugar mais afastado, sem vizinhos ao redor, e Jorge disse que iria ao banheiro.

“Eu vou depois. Vou fumar um cigarro, já que o senhor não deixa fazer isso na Variant.” – disse Fernando.

“Bem que eu faço.”

Quando Jorge voltou, minutos depois, os lanches e os cafés já estavam servidos. Fernando comia sua torrada numa rigidez estranha, havia dois cigarros apagados no cinzeiro, e o parceiro de viagem notou que lhe tremiam as mãos quando ergueu a xícara de café.

“Pois é, doutor Jorge. Como eu ia dizendo antes, eu estou gostando muito de trabalhar na secretaria. O pessoal está sendo muito bacana comigo…”

Jorge estranhou aquela conversa, mas percebeu a razão do comentário quando Fernando, num rápido e amedrontado olhar de esguelha, chamou-lhe a atenção para a mesa próxima: dois homens grandes, óculos escuros e expressões graves, tomavam cada qual o seu café, num silêncio que parecia prestar atenção em todo o salão. Depois, fazendo com o dedo trêmulo sobre a mesa um sinal quase imperceptível, Fernando apontou para a enorme janela do restaurante: lá fora, estava estacionado um Fusca preto e branco da polícia.

“Muito bem.” – respondeu Jorge Augusto – `Nós estamos mesmo muito satisfeitos com o seu desempenho. Mas procure evitar estas palavras durante o serviço.”

“Que palavras, doutor Jorge?”

“Bacana. Este tipo de palavra não combina com o ambiente da secretaria. Em viagem até pode ser, mas o senhor deve evitar gírias no trabalho.” – e Jorge Augusto era agora o homem sério, o fiscal consciencioso, chefe auxiliando o novato a não desperdiçar a carreira.

“Pode deixar, doutor Jorge. Muito obrigado por me orientar. Mas eu só queria dizer que estou muito feliz com a chance de trabalho que vocês estão me dando.” – e mais não disse, até porque nada sabia do cotidiano do emprego daquele que hoje o levava à segurança e ao desconhecido. Apenas ficou em silêncio, tomando o seu café em goles hesitantes e mastigando sem gosto a torrada, as palmas das mãos repentinamente suadas.

“Estrada boa, não é?” – comentou Jorge Augusto, apenas por falar, para que o desconforto da mudez não chamasse a atenção da mesa onde os dois homens seguiam bebendo o seu café em silêncio, pesados.

“Sim, muito boa. O governo se preocupa com isso. Mas eu preciso agradecer que o senhor tenha me trazido nesta viagem. É muito bom para a minha experiência.”

“Sim, sim.” – respondeu Jorge, breve.

“Pode deixar que eu vou saber corresponder a essa confiança.”

Nesse momento, um dos homens interrompeu seu silêncio, virou-se para mesa de Fernando e Jorge e, rindo com certo desdém, comentou, apontando para o jovem:

“Esse guri vai longe na carreira! Nunca vi ninguém tão puxa-saco!” – e riram, o companheiro e ele, levantando-se e saindo, enquanto acenavam para as moças do balcão.

“Tchau, meninas! Botem os cafés na conta do Abreu!” – disse um deles.

“Se ele não paga, nem eu!” – completou o outro, piada que talvez repetissem todos os dias.

Fernando e Jorge Augusto sorriram protocolarmente do comentário do policial e depois renovaram uma espécie de mutismo nervoso enquanto terminavam os cafés. Fernando deixou parte da torrada no prato e comentou baixinho que não conseguia mais comer:

“Me veio uma bola no estômago.” – disse.

“Então enrola esse restinho num guardanapo e leva. Tu tem que te dar conta que não pode desperdiçar nada!”

Fernando baixou a cabeça, como se pela milésima vez se apercebesse desta viagem sem roteiro que os tempos tristes lhe impunham, e enrolou o pedacinho do lanche num guardanapo de papel com o nome do restaurante. Depois levantou os olhos e enxugou com as mãos certo suor do pescoço; seu rosto tinha a repentina palidez do medo.

“Preciso ir no banheiro. Não tou me sentindo muito bem.”

“Quer alguma ajuda?”

“Não precisa, tio. Só vou me lavar um pouco e já vai passar.” – e levantou-se, passos apreensivos em direção ao sanitário.

Tio, pensou Jorge Augusto enquanto olhava o rapaz se distanciando. Que realidade era essa, que o obrigava a levar para a incerta segurança do exílio um rapaz que ainda o chamava de tio?