O MAIS FIEL OBITUÁRIO

O melhor obituário de Milan Kundera na mídia brasileira foi assinado por Marcel Novaes, pesquisador e pensador político em DO CZARISMO AO COMUNISMO (Três Estrelas, 2017) e romancista em OS AUTOMÓVEIS ARDEM E CHAMAS (Penalux, 2022), artigo publicado ontem na Ilustríssima da Folha de S. Paulo. Muito difícil pinçar melhores frases e ideias mais iluminadoras de um pensador denso e prolífico como Kundera, além de exímio usuário da linguagem, mas o texto de Marcel traz uma excelente seleta. Morreu um crítico fundamental de todos os totalitarismos. Por isso mesmo, ainda mais importante nos dias de hoje, quando o totalitarismo surge encoberto pelas mais bem intencionadas militâncias. Como conclui Marcel:

“Vacinar-se contra as tentações líricas! A quem ocorrerá formular um pensamento como esse, hoje em dia? Quando as boas intenções contam tanto, quando as lágrimas sempre vêm aos pares, com a segunda exibindo a emoção que se sente com a beleza da própria emoção, estejamos atentos: ‘O mal já está presente no belo, o inferno está contido no sonho do paraíso e, se queremos entender a essência do inferno, temos de examinar a essência do paraíso do qual se originou. É muito fácil condenar os gulags, mas rejeitar a poesia totalitária que leva aos gulags por meio do paraíso continua tão difícil quanto sempre foi. Hoje, pessoas ao redor do mundo rejeitam a ideia de gulags, mas ainda se deixam hipnotizar pela poesia totalitária e marcham para novos gulags ao som da mesma melodia’”.

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Milan Kundera — entre o riso e a poesia totalitária

Quando eu tinha uns vinte anos, ganhei A Insustentável Leveza do Ser de presente do meu pai. Li algumas páginas e deixei de lado. Que autor de ficção era esse que, em vez de começar a contar sua história, entrava a falar de Nietzsche e do eterno retorno, de Hitler e de Parmênides? Que, na segunda página do livro, já se arriscava a declarar que “As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia; até mesmo a guilhotina”? Aquilo não se parecia com nada que eu tivesse lido até então. Foi só depois de alguns meses que retomei a leitura.

Comecei para nunca mais parar. O tipo de prosa do livro, entremeada por reflexões do autor, que afinal é a marca de Kundera, acabou me cativando. Como neste famoso trecho: “Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do kitsch se pratica a ditadura do coração (…) O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: Como é bonito crianças correndo num gramado! A segunda lágrima diz: Como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado!”. O narrador de Kundera não se limita a registrar pensamentos e sentimentos dos personagens; ele se detém a analisá-los em profundidade, desvendando contradições das quais nem os próprios personagens estão inteiramente conscientes.

Nascido em 1929 em Brno, na então Tchecoslováquia, hoje República Tcheca, Kundera a princípio estudou para ser músico como o pai, depois se interessou por cinema e cursou a Academia de Artes Cênicas de Praga. Em 1950, foi expulso do Partido Comunista, experiência que inspirou a investigação moral e psicológica da vida no mundo comunista em seu primeiro romance, A Brincadeira, de 1967, que narra a desventura do militante Ludvik, expulso do partido e enviado a trabalhar nas minas por causa de uma piada. A lembrança da votação na qual seus colegas decidiram seu destino nunca mais o deixou: “sempre que conheço pessoas novas, homens ou mulheres com potencial para se tornarem amigos ou amantes, eu os projeto de volta àquele tempo, àquela sala, e me pergunto se eles levantariam suas mãos; ninguém jamais passou nesse teste; todos eles sempre levantaram a mão da mesma maneira que meus antigos amigos e colegas”. Ludvik viveu para sempre preso naquela sala de mãos levantadas. Mas, como sempre acontece nas obras de Kundera, o protagonista não está isento de escrutínio: “Talvez fosse cruel de minha parte submeter as pessoas que conhecia a essa avaliação (…) eu o fazia por uma única razão: para elevar a mim mesmo acima dos outros em minha complacência moral (…) teria eu sido o único a não levantar a mão? Seria eu o único homem justo?”.

Kundera foi readmitido ao Partido, mas expulso novamente em 1970. Com o fracasso da chamada Primavera de Praga, exilou-se na França, em 1975. Sua cidadania tcheca foi cassada em 1979, e seus livros foram banidos em seu país natal. Tornou-se cidadão francês em 1981, abdicando da língua materna e passando a escrever em francês. Entre 2019 e 2020, já com mais de 90 anos, fez as pazes com a República Tcheca ao ter sua cidadania restaurada e ser agraciado com o prêmio nacional Franz Kafka (apesar do enorme sucesso, nunca recebeu o prêmio Nobel).

O tema da sedução pelo poder, recorrente quando se fala em revoluções, foi explorado no segundo romance, A Vida Está em Outro Lugar, de 1969. O protagonista, Jaromil, é um esteta e aspirante a poeta que se converte em entusiasmado militante comunista. O narrador observa o momento em que Jaromil dirige a seu tio um jargão popular, “a classe operária vai lhe cortar o pescoço”, e comenta: “agia assim com um sentimento de intensa satisfação; tinha a impressão de fazer parte de uma multidão de mil cabeças, de ser uma das cabeças do dragão de mil cabeças de um povo em marcha e achava aquilo grandioso”. Cem páginas depois, o jovem já está dizendo que “polícia e poesia talvez combinem bem mais do que algumas pessoas pensam” e que “seria a maior das crueldades não ter a coragem de ser cruel com os cruéis”.

O tema da vida sob o comunismo, analisado com devida profundidade, está presente em várias de suas obras, principalmente nas que foram escritas antes da queda do muro de Berlim, mas militância política e distribuição de culpa para pessoas e eventos históricos não são o centro de sua atenção. “Suspender o julgamento moral não é a imoralidade da literatura, é a sua moral. A moral que se opõe à prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender. Essa fervorosa disponibilidade para julgar é, do ponto de vista da sabedoria do romance, a asneira mais detestável, o mal mais pernicioso”. “Desde sempre, profunda, violentamente, detesto aqueles que querem encontrar numa obra de arte uma atitude (política, filosófica, religiosa, etc) em vez de procurar uma intenção de conhecer, de compreender, de apreender esse ou aquele aspecto da realidade” [trechos de Os Testamentos Traídos, coletânea de ensaios de 1993]. “O mundo totalitário (…) é um mundo de respostas e não de perguntas. [Nesse mundo], a literatura não pode existir.”

Em vez disso, a função do texto de ficção, para Kundera, é mapear as possibilidades de existência do ser humano, conforme discutido a partir de diferentes pontos de vista nos ensaios e entrevistas contidos no livro A Arte do Romance, de 1986. “À sua própria maneira, através de sua própria lógica, o romance descobre as várias dimensões da existência, uma por uma: com Cervantes e seus contemporâneos, inquire a natureza da aventura; com Richardson, começar a examinar ‘o que se passa por dentro’, a revelar a vida secreta dos sentimentos; com Balzac, descobre o enraizamento do homem na história; com Flaubert, explora a até então terra incognita do cotidiano; com Tolstói, foca a intrusão do irracional no comportamento e nas decisões humanas. Examina o tempo: o passado fugidio com Proust, o presente fugidio com Joyce”.

Assim, o autor usa a existência do personagem como ponto de partida para um experimento de observação e para sua própria reflexão. Sobre A Vida está em Outro Lugar, por exemplo, Kundera observou: “Eu não mostro o que se passa dentro da cabeça de Jaromil; em vez disso, eu mostro o que se passa dentro da minha própria; observo Jaromil por um longo tempo e tento, passo a passo, chegar ao coração de suas atitudes, a fim de entendê-las, nomeá-las, tomar posse delas”. Depois de falar sobre a sensação de vertigem da personagem Tereza, de A Insustentável Leveza, ele diz: “Vertigem é uma das chaves para entendermos Tereza. Não é a chave para entendermos a mim e a você. Mas ambos sabemos que a vertigem é um possibilidade para nós, uma das possibilidades da existência. Eu tive que inventar Tereza, um ‘eu experimental’, para entender essa possibilidade, para entender a vertigem (…) Um romance não é nada mais que uma longa interrogação”.

Kundera tocou no tema da individualidade do personagem em seu discurso de aceitação do Prêmio Jerusalem, em 1985, no qual lembrou a palavra agelaste, cunhada por Rabelais para designar uma pessoa que nunca ri. Segundo ele, “Nenhuma paz é possível entre o romancista e os agelastes. Como nunca ouviram a risada de Deus, os agelastes estão convencidos de que a verdade é óbvia, que todos os homens pensam a mesma coisa e que cada um é exatamente aquilo que acredita ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e a concordância unânime dos outros que o homem se torna um indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém detém a verdade, nem Anna nem Karenin, e no qual todos têm o direito de serem compreendidos, tanto Anna quanto Karenin”.

A menção aos agelastes é apropriada, pois o humor nunca está ausente da literatura de Kundera (seu personagem Tomas comenta, sobre a aparência de uma moça: “dir-se-ia que era o estranho produto do cruzamento entre um grácil rapazinho, uma girafa e uma cegonha”). O Livro do Riso e do Esquecimento, de 1978, trata desses dois temas ao longo de sete contos. Em um deles, duas meninas começam a chorar em sala de aula e seu choro faz com que os colegas caiam na risada; a professora interpreta errado a situação e começa a rir também, o que aumenta o sofrimento das duas moças e as faz estremecer em soluços; a professora julga que estremecem por estarem rindo e as toma pelas mãos a fim de dançar; as três então dançam pela sala, todas às lágrimas em um mal entendido grotesco. Em outro momento do mesmo livro, o chapéu de um dos presentes a um funeral é levado pelo vento e acaba caindo dentro da cova. Em um terceiro, dois homens trocam olhares durante uma grande orgia e acham graça na situação; tentam controlar a hilariedade, já que “aqui o riso seria um sacrilégio tão grande quanto na igreja”, mas é justamente a visão do outro rindo que provoca o riso em cada um, e acabam expulsos.

“Eu aprendi o valor do humor durante o horror stalinista”, disse Kundera durante uma entrevista com Philip Roth. “Eu tinha 20 anos na época. Podia sempre reconhecer uma pessoa que não era stalinista, alguém que eu não precisava temer, pela forma como sorria. O senso de humor era um sinal confiável de reconhecimento. Desde então, tenho pavor de um mundo que está perdendo o senso de humor”.

É claro que observador tão arguto não deixaria de notar que, assim como o humor e o espírito da ironia podem existir em meio ao totalitarismo, o espírito totalitário também pode habitar as melhores intenções: “Lirismo, lirização, discurso lírico, entusiasmo lírico fazem parte integrante daquilo que chamamos mundo totalitário; esse mundo não é apenas [o interior do] gulag, é o gulag cujos muros exteriores estão cobertos de versos diante dos quais se dança. Mais do que o Terror, a lirização do Terror foi para mim um traumatismo. Fiquei vacinado contra todas as tentações líricas”.

Vacinar-se contra as tentações líricas! A quem ocorrerá formular um pensamento como esse, hoje em dia? Quando as boas intenções contam tanto, quando as lágrimas sempre vêm aos pares, com a segunda exibindo a emoção que se sente com a beleza da própria emoção, estejamos atentos: “O mal já está presente no belo, o inferno está contido no sonho do paraíso e, se queremos entender a essência do inferno, temos de examinar a essência do paraíso do qual se originou. É muito fácil condenar os gulags, mas rejeitar a poesia totalitária que leva aos gulags por meio do paraíso continua tão difícil quanto sempre foi. Hoje, pessoas ao redor do mundo rejeitam a ideia de gulags, mas ainda se deixam hipnotizar pela poesia totalitária e marcham para novos gulags ao som da mesma melodia”.