O DIA EM QUE QUASE MATEI MEU MELHOR AMIGO

Narrativas e Depoimentos publica conto inédito do poeta Paulo Mohylovski, conhecido em seu bairro pelo epíteto de “O Bardo do Brooklyn”. Mohylovski, que compartilha com a equipe da VB&M duas paixões, a literatura e os cachorros, este ano tem se dedicado à escrita de histórias breves. “O dia em que quase matei meu melhor amigo” é uma das que deverão compor um volume de contos da infância. A ideia surgiu depois que o autor reencontrou alguns amigos da infância em grupos da internet. Um cenário é comum: o bairro do Brooklin, mas o antigo bairro, sem prédios, sem glamour, uma cidade do interior.

Meus amigos eram todos da vila ao lado de casa, vivendo as mesmas penúrias e as mesmas alegrias de crianças de pais com pouco dinheiro. Mas eu tinha um amigo da área rica do Brooklin, o Betinho. Ele morava numa casa ampla, de esquina. Tinha uma garagem para dois carros. Tinha uma empregada de uniforme. E um quarto só para ele, cheio de miniaturas de aviões de guerra e jipes. Tinha um capacete militar e tinha metralhadoras e pistolas barulhentas. Brincávamos de guerra no seu amplo quintal. Nunca um contra o outro. Sempre contra um inimigo imaginário. Ele tinha dois rádios walkie-talkies. Ninguém mais tinha um treco daqueles. Toda hora: amigo, onde você está? Estou entrincheirado mandando balas contra os alemães, e você? Estou lutando contra um monte de japa, tem uns 30 querendo me pegar. Eu vou te ajudar, câmbio final.

Quando não eram os japas e os alemães, eram monstros interplanetários. Amigo, estou lutando contra um monstro verde de um olho só e você? Estou lutando contra um morcego gigante que cospe raios ultravioletas, câmbio final.

Depois íamos tomar um lanche na sua sala de jantar. Eles tinham sala de jantar! Na minha casa a cozinha praticamente era grudada na sala. Eles tinham uma mesa com uma linda toalha branca. Na minha, uma toalha velha e quadriculada, que minha mãe dobrava reduzindo a mesa pela metade. Como eu odiava aquela meia-mesa!

A casa de Betinho era silenciosa. Não havia gritos e nem cara feia. A mãe dele era meiga e me tratava quase como outro filho, era atenta e acolhedora. Eu comia tudo que desejava e bebia chocolate quente naquelas xícaras cheias de desenhos refinados. Um dia quebrei uma delas. Não ouvi nenhuma bronca, nenhuma palavra estúpida, apenas um “não tem problema, meu filho”. A xícara quebrada foi levada e uma mais bonita apareceu no seu lugar.

Eu preservava a minha amizade com Betinho. Era como se ele fosse só meu. Não levava ninguém da vila para brincar conosco. E não gostava nenhum pouco que ele fosse na minha casa. Estava sempre arrumando uma desculpa para ele não ir; se fosse, a gente ficava comendo caqui do pé de caqui no fundo do quintal. O quintal da casa dele não tinha terra, nem árvores. Era tudo de laje fria. Mas eu gostava mais do quintal dele do que do meu.

Nós estudávamos na mesma escola, na mesma classe. Era uma escola de freiras que aceitava meninos. Ele ficava na carteira da frente e eu na detrás. Um perto do outro, sempre. Ele tinha uma coleção de lápis de cor, apontadores, borrachas brancas e até uma caneta toda niquelada, prateada. Eu só tinha um lápis, uma caneta e uma borracha. Minha mãe sempre reclamava do preço do material escolar: quanto mais barato, melhor.

No recreio, Betinho abria a sua lancheira. Tinha de tudo: até barras de chocolate e de cereal. A minha só tinha um pão com manteiga e um ovo. Ele dividia o seu lanche comigo. Eu nem sei como a gente estudava na mesma escola. Meu pai nunca teve muito dinheiro, demoramos séculos para ter telefone e carro. Mas a gente estudava juntos e era isso que importava. Nada iria abalar a nossa amizade. Íamos e voltávamos juntos. Eu adorava o Betinho porque, mesmo com mais dinheiro, ele não era arrogante. Conheci muito menino que só porque tinha a porcaria de um autorama era o maior metido. Desses caras não quero nem lembrar.

Eu lembro que nossa escola ficava no final da rua, na rua Jurubatuba, e tinha um problema: quando chovia muito forte, formava um rio na rua da frente. Não era exagero. Era um rio mesmo. Quantas vezes víamos os nossos pais, de guarda-chuva, do outro lado da rua, esperando as águas baixarem; chegava a demorar duas horas. Em dias assim, a gente nem ia pra escola, ou os professores nos dispensavam mais cedo antes da chuva.

Uma vez, choveu muito, mas, na hora de sair, as águas já tinham baixado um pouco. Dava para atravessar. As crianças começaram a ir embora, sozinhas. Vi que havia formado uma cratera enorme ao lado da escola. Curioso, fui lá ver. Formou uma piscina de água barrenta – a correnteza ainda continuava lá, mas não com tanta força. Fiquei olhando horas, simplesmente contemplando, sem pensar em nada, quando senti duas mãos nas minhas costas me empurrando. Tomei um susto tremendo e caí na encosta: minha mala caiu na cratera e uma das minhas pernas se afundou na água escura. Me agarrei no mato, tentando fazer de tudo para me manter fora d’água. Eu não sabia nadar e estava realmente apavorado. Me senti num filme de aventura, mas aquilo era real. Que esforço para me erguer! Consegui e fiquei ofegante deitado na margem, completamente enlameado. Ainda tive que pegar um pedaço de galho para içar minha maleta. Estava completamente encharcada, todo material escolar perdido. Subi a encosta e quem estava lá, rindo?

Betinho.

Eu podia esperar qualquer um, ficaria com ódio de qualquer um, mas não faria nada. Quando vi que era o Betinho, uma náusea profunda me subiu pela garganta, misturada com ódio e decepção. Então o meu venerado amigo, aquele que eu endeusava, era igual a todos os outros, nada de lealdade. Apenas um filho da puta como outro qualquer. Ou seja, eu não era nada para ele, apenas um cara que podia ser empurrado numa correnteza de água imunda. Me senti traído. E a desilusão se misturou com a náusea e com o ódio, principalmente. Ódio daquela minha vida sem brinquedos caros, sem autorama, sem empregada de uniforme, sem TV a cores, sem nada. Eu me aproximei de Betinho. Ele ainda estava com um sorriso mole e idiota no rosto. Quer dizer, então, que o seu amigo de guerra, de batalhas interplanetárias, era apenas um serzinho insignificante que merecia ser empurrado pelas costas. Não tive dúvidas, me aproximei lentamente e meti as duas mãos no seu peito. Ainda vi seu olhar espantado quando despencou encosta abaixo. Ele simplesmente caiu no meio de um redemoinho de águas. Só a sua cabeça ficou para fora. Vi como ele defendeu a própria vida nadando com todas as suas forças, ainda com a mochila nas costas. Por um momento, achei que ele fosse morrer e me arrependi: eu iria matar meu melhor amigo!

Por fim, ele conseguiu sair da água, estava mais molhado do que eu.

– Ainda bem que eu sei nadar! – ele disse.

Depois me olhou e estendeu a mão para mim:

– Desculpa, amigo, por ter feito aquilo com você!

Eu havia tentado matá-lo e ele estava me pedindo perdão! Eu me senti o pior das crianças. Eu era mesmo mau. Minha mãe tinha razão: eu não fazia nada direito, só tinha cara de anjo, merecia ser castigado, merecia um murro na cara e tudo que ele fez foi estender a mão amiga. Aquilo realmente doeu e eu comecei a chorar:

– Eu que tenho que te pedir desculpa. Eu fui mau. Você podia ter morrido, Betinho.

– Eu que fui mau, eu que te empurrei primeiro. Você apenas se defendeu.

– Não, eu me vinguei. Isso que eu fiz: me vinguei.

Eu chorava que nem um bezerro desmamado. Betinho me abraçou:

– Não tem problema, Pedrinho, eu gosto de você.

E ele também começou a chorar, e a chuva voltou a despencar ainda mais forte.

– Vamos logo antes que a correnteza volte a subir – ele disse.

Pegamos uma subida enquanto a chuva castigava os nossos pequenos corpos.

– Eu nunca mais vou fazer isso com você, Pedrinho, nunca mais vou te machucar. Eu vou te proteger, você vai ser meu irmão que eu nunca tive.

– Eu também nunca mais vou te ferir, Betinho. Vamos ser amigos para sempre. Nunca vamos deixar de ser amigos. Nunca!

– Nunca, Pedrinho, nunca.

Isso no meio de uma chuva atroz que molhava os nossos rostos junto com as nossas lágrimas. Não paramos de chorar um segundo. Eu pedi pro Betinho ir pra minha casa, dizer para minha mãe o que tinha acontecido, senão iria levar uma bronca daquelas por estar tão imundo.

Chegamos abraçados e chorando. Betinho falava pra minha mãe:

– Ele não teve culpa, fui eu o culpado, eu que empurrei ele no rio.

Minha mãe estava tão perplexa que não disse nada. Só disse pra eu ir tomar banho. Eu abracei novamente o Betinho e entrei.

Nossa amizade, entretanto, foi morrendo aos poucos. Deixei de ir na sua casa e, quando o rio da existência nos separou, nunca mais nos vimos.

Minha mãe, já uma senhora de muita idade, quando eu contei que iria escrever sobre o dia em que quase matei meu melhor amigo, me disse:

– Eu me lembro quando vocês dois chegaram molhados. Vocês eram tão pequenininhos. Como é que a escola deixou vocês irem embora naquela chuva? Eu não entendo como eles deixaram.

– Não sei. Tem muita coisa que eu também não entendo e nunca vou entender – respondi.