O COTIDIANO POÉTICO DE LUCÃO

Anna Luiza Cardoso

Poeta que ganhou leitores e renome publicando e lançando sua carreira na internet, Lucão aproveita a Entrevista ao blog da VB&M para dar um rolê precioso pelas memórias de sua infância e contar como vivências se transformam em poesia, ou literatura em geral. Iluminando as leituras que o fizeram escritor, Lucão apresenta e comenta seu novo livro, uma estreia no gênero, as crônicas de VIVER NÃO PODE SER SÓ ISSO (Amazon).

VB&M: Você é um dos pioneiros do movimento da poesia na internet. Como começou esse processo e qual a sua relevância para o gênero? Como é sua relação com seus leitores através das redes sociais?

L: Gosto de ter participado desse movimento, que eu brinco de chamar de “transposição da poesia”. A internet levou poesia para um povo que não tinha muita oportunidade de ler. O livro é caro e o gênero, por muito tempo, ficou inacessível também pelo exagero dos recursos estilísticos. Poucos compreendiam alguma coisa ou viam algum sentido nos poemas. De repente, com a internet, uma outra poesia foi apresentada. Versos que já existiam em muitas obras poéticas, claro, mas negados até mesmo pela Academia. Mario Quintana, o poeta que escreveu “Todos esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho”, como reza a lenda, compôs esse “poeminho” quando perdeu pela terceira vez uma vaga na Academia Brasileira de Letras. A internet, de certa forma, democratizou o acesso às palavras poéticas, e apresentou a diversidade de escritores e estilos dentro do próprio gênero. O povo passou a “gostar” de poesia.

O meu processo começou antes, com os livros nas mãos, lendo e descobrindo essa poesia acessível através das bibliotecas. Quando li Rubem Alves e, consequentemente, Manoel de Barros, Mario Quintana, Adélia Prado, fui descobrindo que gostava de poesia. Rubem Alves uma vez definiu o amor assim: “Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que a qualquer hora ele pode voar.” Quando li esses versos, pensei muito no pássaro pousado no dedo, e compreendi mais sobre o amor assim, lendo delicadezas, que me deixavam em pensamento. Foi compreendendo isso que passei a brincar de escrever versos e, com o tempo, virei poeta. As redes sociais estavam surgindo quando comecei a compartilhar um pouco do que escrevia, sem pretensão, até que as pessoas passaram a me acompanhar pelos versos que eu compartilhava.

Sempre fui um escritor que mais lê do que escreve. É regra: leio antes de escrever, religiosamente. Com as redes, tive a oportunidade de acompanhar velhos autores e conhecer novos escritores. Pude aumentar minha experiência com os versos. Foi assim que fui sendo reconhecido também como escritor e passei a ter meus textos publicados em livros.

Minha relação com os leitores é de puro afeto. Tento ser para eles o que os meus autores foram e ainda são para mim, inspiração, paz, alento. Tento retribuir isso.

VB&M: De que forma as redes sociais influenciaram a renovação do interesse dos jovens leitores pela poesia e qual a importância do gênero nos dias de hoje?

L: Sobre a renovação, acho que acabei falando um pouco disso na resposta anterior, mas mais especificamente, as redes sociais abriram o leque, mostraram que a arte, a literatura e, especialmente, a poesia, são um espaço muito diverso.

Temos a poesia do slam, temos o cordel, temos os versos soltos, os aforismos, os sonetos, a prosa poética… Saber da existência dessa diversidade é um alívio, pois nos faz pensar que é possível gostar de poesia, mesmo que eu não goste de um estilo específico. Eu caibo no gênero sem ter que gostar de tudo. Esse, para mim, é o maior entendimento sobre leitura de forma geral. Quando compreendemos isso, quando nos conhecemos e passamos a aceitar os nossos gostos, passamos também a buscar na literatura o que nos agrada, ou aquilo com o que nos identificamos mais.

Falando de importância, a poesia é, talvez, o gênero que mais pode refletir sobre os momentos. Quero dizer que, por ser breve, reflete sobre o instante que vivemos com mais rapidez. Se você quiser entender um momento histórico de um povo, de uma época, eu diria: procure pelos poetas dessa época. Eles, com certeza, colocaram em palavras as situações que viveram.

A poesia faz a reflexão, a crítica, a provocação… Ler poesia nos deixa em estado de pensamento, é um exercício que malha o cérebro, de verdade. A importância da poesia, então, para os dias de hoje seria a de nos ajudar a interpretar melhor essa maluquice toda. E se tem uma coisa que precisamos fazer nos dias de hoje é estar sãos. Claro, além de nos ajudar a pensar, poesia é alívio também. Ler poesia é sossegar-se um pouco, um minuto que seja.

VB&M: Além de escritor, você também ministra cursos e palestras de escrita criativa. Quais os maiores desafios para quem quer começar uma carreira na literatura?

L: Eu acho que o maior desafio de quem ministra cursos de escrita hoje é acalmar os desejos imediatos das pessoas. Muitos querem ou precisam escrever melhor, com mais leveza, mas não compreendem que não existe um milagre ou uma água mágica que você tome e plim, está feito o escritor(a). É uma jornada, que leva tempo (um tempo muito gostoso, inclusive) e começa sempre com a leitura. Essa leitura é tanto a do livro, fundamental para o escritor, como a de si mesmo. Ter uma bagagem literária é o que vai me dar a noção sobre que tipo de escritor eu quero ser. Não dá para começar essa jornada sem a leitura. Seria como querer pilotar um avião sem ter nunca entrado num avião. Não dá para sentar lá na cabine, ligar o motor e sair voando. Para pilotar a nave você precisa estudar muito. A nave aqui são as palavras.

Mas a leitura não é só do livro. Compreender quem sou revela meus gostos, meu estilo, mas também me dá compreensão sobre o tempo que vou precisar para conseguir escrever e até como o meu corpo vai reagir a esse processo. É com isso tudo que se escreve. E, óbvio, também é preciso aprender sobre a escrita em si: a língua, os estilos, os gêneros, os padrões, para depois desfazê-los, se for o caso. É uma jornada que, ao menos para mim, só tem começo e é de muito prazer.

VB&M: Você acaba de publicar pela Amazon uma trilogia de crônicas chamada VIVER NÃO PODE SER SÓ ISSO, sua estreia no gênero, que sairá também em áudio-livro. Como foi o processo de escrita e seleção dessas crônicas e qual a importância de se vasculhar as miudezas do cotidiano diante dos tempos extremos que vivemos?

L: Eu adoro a palavra em várias formas e gêneros. Sou poeta, essencialmente, mas sempre fui um leitor de crônicas. Já citei Rubem Alves, mas lia muito Rubem Braga, João Cabral de Melo Neto… Quando fui convidado por um jornal a publicar crônicas, topei sem pensar duas vezes. E depois fui correr atrás de me descobrir como cronista. Pensava muito assim: “Sobre o que eu ainda não escrevi que poderia caber nas crônicas?”. A resposta não demorou e comecei a usar as minhas memórias, trechos de histórias que vivi, para escrever crônicas. Situações que, aparentemente, são cotidianas e simples, mas que revelam a riqueza e a complexidade da vida. Quero dizer que se eu narro a história do dia em que aprendi a construir um carrinho de rolimã com o meu avô, não estou falando apenas sobre a construção do carrinho. Estou contando sobre a minha relação com meu avô, refletindo sobre o tempo, o amor, o medo… Ninguém vai poder contar essa história como eu contei, porque só eu vivi essa história com meu avô. Mas muita gente ainda vai se conectar a ela porque, de alguma forma, ou teve uma relação parecida com um avô, ou brincou de carrinho de rolimã, ou pensou sobre o tempo, ou teve medo de descer uma ladeira sentado numa madeira com rodas.

Escrever crônicas passou a ser um exercício de memória para mim, com uma pitada de invencionices.

Tenho o costume de, antes de enviar as crônicas ao jornal, mandar para o grupo de whatsapp da minha família. É muito comum eu receber comentários assim: “Eu lembro dessa história, mas não foi bem assim que aconteceu” ou “Sua avó não era lá essa santa como você pintou na crônica”. Eu adoro isso e me divirto, porque não é para isso que a literatura e a arte existem? Para contar umas mentirinhas com cara de verdade? (rs) Ao escrever, eu misturo um pouco da minha memória com a fantasia, aumentando um ponto a favor da arte, do prazer… Claro que as histórias são baseadas na minha memória e na forma como me recordo delas. Eu respeito a história, mas também me divirto contando sobre a minha perspectiva, de personagem e também de autor do causo.

Essas histórias me ajudam a recordar o que é viver. Lembro-me da infância nos quintais das casas dos meus avós, da minha casa cheirando a bolo nos sábados que minha a mãe passava na cozinha fazendo salgados e doces, das aventuras pelo Caminho de Compostela. Recordar é viver. E viver não pode ser só isso, o presente, acelerado, cansativo. Tem que ser mais. Eu só não sei o que é esse “mais”, mas escrevo para buscar compreender. Esse livro de crônicas, essa série de três volumes, nasceu para investigar, de forma divertida e afetiva, esse mistério que é o viver.