“NUNCA MAIS ALGO TÃO HEDIONDO”

À frente de um catálogo de 30 magníficos autores americanos de não-ficção nas áreas de psicanálise, budismo e história, além de memórias e biografias, e uma pequena dose de refinada ficção, Anne Edelstein é um caso de agente literária de sucesso que não faz qualquer concessão à chamada literatura comercial ou mesmo ao que não compõe o seu gosto literário. Anne começou sua carreira na indústria norte-americana do livro como assistente editorial na Poseidon Press, selo da Simon & Schuster, há mais de 25 anos, de onde partiu para trabalhar na agência Writers House. Hoje, independente, à frente da agência que leva seu nome, ela representa um dos catálogos mais homogêneos entre os clientes estrangeiros da VB&M. Nesta Conversa (A) Gente, Anne revela como construiu sua lista de autores, comenta sobre sua relação com eles e sobre a ficção que seleciona para representar. Discorre ainda sobre os princípios de reflexão e aceitação que seus autores promovem em meio a um mundo cada vez mais caótico e violento. Quem esteve com Anne durante os últimos anos sabe, porém, como ela se afligiu durante o governo Trump e a campanha eleitoral, para não mencionar a invasão do Capitólio em 6 de janeiro. Mas Anne confia: quero crer que as pessoas não vão apoiar algo tão hediondo outra vez.

VB&M: Quando, como e por que você se tornou agente literária?

AE: A primeira vez que ouvi falar de “agente literário”, eu era assistente editorial na Poseidon Press. Antes disso, eu trabalhara numa casa de leilões de livros raros e quis me envolver mais com livros do presente! Na Poseidon, uma divisão da Simon & Schuster, fui exposta às complexidades de uma editora, educação importante que me fez compreender que eu gostaria de lutar, assim como ajudar a dar forma, aos livros que escolhesse trabalhar. Dali, fui trabalhar numa agência literária.

VB&M: Como você definiu o catálogo de livros e autores que gostaria de representar, uma das listas mais coerentes entre os clientes estrangeiros da VB&M?

AE: Bons autores, que amem trabalhar com a linguagem e que sejam capazes de transformar a maneira como as pessoas veem o mundo.

VB&M: Você tem algum envolvimento pessoal com o budismo e a psicanálise?

AE: Estou envolvida com o budismo na medida em que me vejo naturalmente atraída pelos trabalhos de meus clientes budistas. Possivelmente, isso se deve ao fato de muitos deles relacionarem o pensamento budista com a condição humana psicológica, que sempre me interessa.

VB&M: Qual o segredo do sucesso de um catálogo que não faz concessão à literatura comercial?

AE: Nada mais excitante do que um autor, que não se caracteriza abertamente como “comercial”, capturar e até redefinir a maneira como as pessoas percebem uma ideia. É gratificante que A ILHA NO CENTRO DO MUNDO (Objetiva), de Russell Shorto, tenha literalmente mudado a visão das pessoas acerca da história de Manhattan, tal como James Shapiro abriu um olhar sobre Shakespeare a partir de uma perspectiva cultural e histórica, influenciando a maneira como o bardo passou a ser apreciado nos dias de hoje. Ou como as belas memórias de Kathleen Finneran, THE TENDER LAND, publicadas originalmente há mais de 15 anos, enquanto jamais um best seller, abrem a porta para uma melhor compreensão da complexidade da família, incluindo como esta se relaciona com o suicídio, e continuam lidas a ponto de nesta temporada o adiantamento (pelos direitos de publicação – NT) ter sido recuperado e estarem gerando royalties. Felizmente, ela começou um novo livro de memórias.

VB&M: Você é mais leitora de ficção ou de não ficção?

AE: Me pego quase sempre lendo ficção, quando não estou explorando novos manuscritos. Muito recentemente, andei imersa nos primeiros romances de Edna O’Brien: que sorte descobrir agora a beleza da escrita dela.

VB&M: O que caracteriza a ficção que você acolhe em sua lista e gosta de representar?

AE: Embora não tenha acolhido muita ficção ultimamente, acabei de vender os direitos do romance de estreia da escritora Barbara Graham, WHAT JONAH KNEW, classificado por ela como um “thriller psicoespiritual”, em que as memórias de um jovem de 22 anos desaparecido se entrelaçam com as de um menino. Mesmo não sendo uma grande leitora de thrillers, tive uma ótima experiência com essa narrativa, que aborda temas sobre evidências científicas da reencarnação a partir da perspectiva das mães desses rapazes misticamente conectados.

VB&M: A ARTE DA SOLIDÃO, de Stephen Batchelor, recentemente vendido a Gisela Zincone da Gryphus, no Brasil, e a mais seis editores internacionais, é um de seus títulos quentes na lista para a próxima Frankfurt. O que você mais aprecia nesse livro?

AE: Stephen Batchelor, também autor de MEMOIR OF A BUDDHIST ATHEIST (Memórias de um ateu budista), é sempre um escritor atencioso, eminentemente sábio, que aborda as indagações da religião e os princípios do budismo com grande seriedade. Em A ARTE DA SOLIDÃO, não exatamente um “livro budista”, mas imerso na história do budismo em sua prática, ele busca entender o que a solidão realmente significa — como desejá-la e quão ilusório é alcançar sua beleza. Stephen Batchelor trabalhou nesse livro por alguns anos e acabou tendo a sorte de ser publicado nos EUA bem quando a pandemia começava, um momento em que as pessoas se encontravam isoladas em quarentena e receptivas a uma obra sobre a solidão, fazendo com que esse livro ficasse muito oportuno.

VB&M: Outro título forte do próximo catálogo é THE ZEN OF THERAPY, do terapeuta budista Mark Epstein, a sair pela Penguin nos EUA em janeiro de 2022. Psicanálise com budismo é uma tendência nos dias de hoje?

AE: Mark Epstein passou grande parte de sua vida fascinado pela interseção entre filosofia e prática budistas e a psicologia ocidental. Embora nunca tenha se tornado monge, ele foi ensinado por grandes pensadores budistas e forjou seu método psiquiátrico à luz desse entendimento. Me lembro de Mark ter dito algo no lançamento de seu primeiro livro sobre ele só conseguir escrever sobre o que o fascina e, quando está com sorte, o resto do mundo entra em sincronia com isso. Sempre houve um forte interesse na obra de Epstein, mas talvez seja em THE ZEN OF THERAPY que sua evolução como psiquiatra budista alcança a perfeita sincronia com o público que agora aguarda seu novo livro.

VB&M: Você diria que as mensagens de Tara Brach, autora de ACEITAÇÃO RADICAL, recentemente publicado pela Sextante, de Batchelor e Epstein estão alcançando corações e mentes do público americano e transformando comportamentos?

AE: Definitivamente, a obra de Tara Brach, Stephen Batchelor e Mark Epstein tornou-se uma parte integral da “psique espiritual” americana (se é que existe tal coisa!). O primeiro livro de Brach, ACEITAÇÃO RADICAL, continua a vender nos EUA quase três vezes mais do que na época de seu lançamento há 25 anos, quando já era um bestseller. Hoje segue crescendo em diversos países. Me lembro quando Tara Brach idealizou o título, parecia “radical” demais. Agora tantos autores escolhem usar essa palavra em seus títulos tornando-a até um termo artístico.

VB&M: Você tem medo das pessoas que invadiram o Capitólio em janeiro? Tem medo do retorno de Donald Trump?

AE: Não consigo aceitar sequer a ideia de Donald Trump poder algum dia voltar ao governo. Ainda é tão angustiante lembrar dos anos em que ele foi presidente, e quero crer que as pessoas não vão apoiar algo tão hediondo outra vez. Por outro lado, sim, a violência que assolou o Capitólio foi o ato mais aterrorizante que já testemunhei em meu país, deixando claro para mim o que existe nos Estados Unidos de maneira muito forte; me fez perceber o quanto eu sempre dei como certo o que significa viver aqui.