NA TERRA DOS NÔMADES

Em Narrativas e Depoimentos, publicamos o Prefácio de NOMADLAND: SOBREVIVENDO NA AMÉRICA NO SÉCULO XXI, da jornalista americana Jessica Bruder, a chegar às livrarias pela Rocco no dia 30. O livro, cuja adaptação para cinema venceu três principais categorias do Oscar, é fruto de um extenso trabalho de campo de Bruder para mostrar a realidade dos nômades americanos: pessoas de meia idade, desempregadas, sem perspectivas ou aposentadoria digna, que investiram suas parcas economias em seus veículos, onde passaram a morar, e tentam ganhar a vida cruzando os EUA em busca do próximo subemprego, seja nos armazéns da Amazon, em redes de fast food ou plantações de beterraba.

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PREFÁCIO

 

Enquanto escrevo, eles se espalham pelo país…

Em Drayton, na Dakota do Norte, um ex-taxista de San Francisco, de 67 anos, trabalha na colheita anual de beterraba-açucareira. Trabalha do nascer ao pôr do sol em temperaturas que caem abaixo de zero, ajudando caminhões que chegam dos campos a expelir toneladas de beterraba. À noite, ele dorme na van que tem sido seu lar desde que o Uber o expulsou do negócio de táxis e o impossibilitou de pagar o aluguel.

Em Campbellsville, no Kentucky, uma ex-empreiteira de 66 anos guarda mercadorias no turno da noite em um depósito da Amazon, empurrando um carrinho sobre rodas por quilômetros pelo piso de concreto. É um trabalho atordoante, e ela se esforça para passar com precisão cada item pelo scanner, na esperança de não ser demitida. Pela manhã, volta a seu trailer mínimo, ancorado em um dos vários estacionamentos que têm contrato com a Amazon para acolher trabalhadores nômades como ela.

Em New Bern, na Carolina do Norte, uma mulher cujo lar é um trailer no estilo gota — tão pequeno que pode ser puxado por uma moto — dorme no sofá de uma amiga enquanto procura trabalho. Mesmo com diploma de mestrado, a mulher de 38 anos, originalmente do Nebraska, não consegue emprego, apesar de ter preenchido centenas de solicitações só no último mês. Ela sabe que a colheita de beterraba está contratando pessoal, mas viajar meio país exigiria mais dinheiro do que ela tem. A perda do emprego em uma ONG vários anos antes foi um dos motivos para ter se mudado para o trailer. Quando se esgotou o financiamento para seu cargo, ela não conseguiu pagar o aluguel, tendo também de pagar a dívida estudantil.

Em San Marcos, na Califórnia, um casal de trinta e poucos anos, em uma motorhome GMC de 1975, cuida de uma barraca de abóboras com brinquedos e um minizoológico, que eles tiveram cinco dias para montar do zero em um terreno vago na beira da estrada. Dali a algumas semanas passarão a vender árvores de Natal.

Em Colorado Springs, no Colorado, um morador de van de 72 anos que quebrou três costelas no trabalho de manutenção de um camping recupera-se enquanto visita a família.

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Sempre existiram itinerantes, andarilhos, vagabundos, almas inquietas. Agora, no terceiro milênio, surge uma nova tribo errante. Pessoas que nunca imaginaram ser nômades botam o pé na estrada. Elas desistiram das casas e apartamentos tradicionais para viver o que alguns chamam de “casa com volante” — vans, RVs de segunda mão, ônibus escolares, picapes adaptadas, trailers e simples sedãs. Elas os dirigem para se afastar das decisões impossíveis que enfrenta o que antes costumava ser a classe média. Decisões como esta:

Você prefere comer ou ir ao dentista? Pagar a hipoteca ou a conta de luz? Financiar um carro ou comprar remédios? Cobrir o aluguel ou a dívida estudantil? Comprar roupas quentes para o inverno ou gasolina para ir e voltar do trabalho?

Para muitos, a resposta, de início, parece radical.

Você não pode escolher ganhar mais, mas que tal cortar suas despesas maiores? Trocar um domicílio fixo por uma vida sobre rodas?

Alguns os chamam de “sem-teto”. Os novos nômades rejeitam este rótulo. Equipados ao mesmo tempo com abrigo e transporte, eles adotaram uma expressão diferente. Referem a si mesmos, simplesmente, como “sem-casa”.

De longe, muitos podem ser confundidos com aposentados despreocupados que moram em RVs (de recreational vehicle, veículos recreativos). De vez em quando eles se permitem uma sessão de cinema ou um jantar em um restaurante, misturam-se com a multidão. Na mentalidade e na aparência, eles são, em grande parte, de classe média. Lavam as roupas em lavanderias automáticas e matriculam-se em academias para usar os chuveiros. Muitos pegaram a estrada depois que suas economias foram destruídas pela Grande Recessão de 2008. Para encher o tanque e a barriga, labutam por longas horas, fazem trabalho braçal. Em uma época de achatamento de salários e custos de habitação crescentes, eles se libertaram dos aluguéis e das hipotecas como um jeito de se virar. Eles estão sobrevivendo aos Estados Unidos.

Entretanto, para eles — como para qualquer pessoa — não basta sobreviver. Assim, o que começou como um último esforço emergencial tornou-se um grito de guerra para algo maior. Ser humano significa ganhar mais do que a subsistência. Tanto quanto alimento ou abrigo, nós exigimos esperança.

Há esperança na estrada. É um subproduto do ímpeto para a frente. Um senso de oportunidade, grande como o próprio país. Uma profunda convicção de que o melhor virá. Está bem à frente, na cidade seguinte, no bico seguinte, na oportunidade seguinte de encontro com um desconhecido.

Acontece que alguns destes desconhecidos também são nômades. Quando eles se encontram — pela internet, no trabalho ou acampando longe das cidades —, começam a formar comunidades. Compartilham compreensão, afinidade. Quando a van de alguém pifa, eles correm o chapéu. Há uma sensação contagiante: alguma coisa grande vai acontecer. O país está mudando rapidamente, as antigas estruturas esfarelam-se e eles estão no epicentro de algo novo. Em torno de uma fogueira compartilhada, no meio da noite, pode-se sentir um vislumbre de utopia.

Enquanto escrevo, é outono. Logo virá o inverno. As demissões de rotina começarão nos empregos temporários. Os nômades desmontarão o acampamento e voltarão para seu verdadeiro lar — a estrada —, rodando como células sanguíneas pelas veias do país. Partirão em busca de amigos e familiares, ou apenas de um lugar mais quente. Alguns viajarão ao outro lado do continente. Todos contarão os quilômetros, que se desenrolam como uma película de filme dos Estados Unidos. Fast-food e shoppings. Campos dormentes sob a geada. Revendas de automóveis, igrejas imensas e lanchonetes 24 horas. Planícies amorfas. Estábulos, fábricas mortas, loteamentos e grandes lojas varejistas. Picos cobertos de neve. A beira da estrada se desenrola, atravessa o dia e entra na escuridão, até que o cansaço se instala. Com olhos baços, eles encontram lugares para sair da estrada e descansar. Em estacionamentos da Walmart. Em ruas tranquilas de subúrbio. Em paradas de caminhões, em meio à cantiga de ninar de motores em ponto morto. Nas primeiras horas da manhã — antes que alguém perceba —, estão de volta à estrada. Dirigindo, encontram segurança neste conhecimento:

O último lugar livre nos Estados Unidos é a vaga de estacionamento.