Conversa com (A)Gente a jornalista e agora escritora Betina Anton, mais novo nome no catálogo da VB&M, que há mais de cinco anos está mergulhada na biografia de um dos maiores monstros da história da humanidade, o médico nazista Josef Mengele, uma vida terrível e ainda muito misteriosamente ligada ao Brasil. Betina tem um estranho laço com a presença de Mengele em São Paulo, o que a motivou a escrever seu primeiro livro, BAVIERA TROPICAL, ainda em curso, mas já bastante adiantado. Pequenina, em 1985, ainda no pré-escolar, ela viu sua professora num colégio alemão na capital paulista sumir da noite para o dia sem qualquer explicação dos adultos, pais ou mestres. Aos poucos, a menina Betina foi entendendo que sua dedicada professora desaparecera quando, em choque, o mundo descobriu que, durante mais de dez anos, ela não só abrigara e protegera Mengele de várias maneiras, como ao final atuara na ocultação de sua identidade quando ele morreu por afogamento, em 1979, na praia de Bertioga. Esse episódio traumático de sua infância marcou-a pelo resto da vida, e Betina acalentou por décadas investigar a vida do Monstro de Auschwitz. Baseada em documentação inédita, encontrada em arquivos da Polícia Federal e outras instituições brasileiras, ela vai revelar a rede que permitiu que um dos nazistas mais procurados do mundo pudesse viver por quase 20 anos em completo anonimato em São Paulo, onde criou sua BAVIERA TROPICAL, um lugar em que podia falar alemão, manter suas crenças, amigos e sua conexão com a Alemanha natal. Nesta entrevista, Betina Anton reflete sobre o peso emocional de sua pesquisa mas também sobre a gratificação intelectual de apreender a história que serve de pano de fundo para o livro, de compreender as decisões éticas de quem se dispôs a ajudar Mengele e captar como um médico pode se transformar num monstro: “Isso gera muita reflexão sobre o que é ser humano. Sobre a empatia e a compaixão que devemos ter, independente das leis vigentes ou do regime que esteja no poder.”
VB&M: O que a motivou a escrever sobre Josef Mengele e seus quase 20 anos de residência no Brasil? Um personagem no mínimo pesado, digamos assim, para ocupar espaço em sua vida por tantos anos…
BA: Sim, são muitos anos, mais de cinco até agora, em que fiquei totalmente imersa nessa pesquisa. Minha motivação veio de uma das minhas primeiras memórias de infância. Minha professora do “pré”, como se chamava na época, parou de dar aulas de uma hora para outra e saiu da escola porque deu proteção a Mengele. Foi um bafafá danado, eu ouvia os adultos comentando, mas não fazia a menor ideia de quem ele fosse. Sempre fiquei intrigada. Décadas mais tarde, já como jornalista, eu estava numa reunião de pauta, quando alguém falou de um filme, baseado na história verídica de um nazista. Achei incrível e voltei a me lembrar de Mengele. Me perguntei: por que eu não conto a história dele e tento entender por que o esconderam por tanto tempo? Comecei a ir atrás de pessoas e documentos daquela época e descobri muitas coisas. Certamente é um assunto que tem um lado muito pesado, como a seleção das pessoas para as câmaras de gás e as experiências médicas com crianças. Mas existem também outros lados muito interessantes: a compreensão da história que serve de pano de fundo para o livro, as decisões éticas de quem se dispôs a ajudar Mengele e como um médico pode se transformar num monstro. Isso gera muita reflexão sobre o que é ser humano. Sobre a empatia e a compaixão que devemos ter, independente das leis vigentes ou do regime que esteja no poder. Além disso, tem um lado psicológico, principalmente quando Mengele envelhece aqui no Brasil, quando acaba tendo mais medo da solidão do que dos caçadores de nazistas. Realmente não devia ser fácil ficar sozinho com a consciência dele…
VB&M: Qual a importância histórica e política de uma biografia brasileira de Mengele? Como você explica nenhum autor brasileiro jamais ter escrito sobre um caso internacionalmente tão célebre?
BA: Realmente é difícil entender como um assunto de importância mundial que ocorreu aqui no Brasil pôde ficar tantos anos sem ser investigado e escrito por um autor brasileiro. É uma história que estava pedindo para ser contada. Em primeiro lugar, acho que tenho a visão de dentro da história neste caso, por ser brasileira e, principalmente, por fazer parte da comunidade alemã de São Paulo. Sei, por experiência própria, como é viver nesta BAVIERA TROPICAL, uma bolha germânica que existe aqui no Brasil. Confesso que até entrar na faculdade, a maioria das pessoas que eu conhecia falavam português e alemão. Então, entendi como Mengele conseguiu manter a conexão com a Alemanha, mesmo estando num aparente fim de mundo, como Eldorado. Ele tinha acesso, por exemplo, a uma livraria alemã aqui em São Paulo, que eu mesma frequento. Dessa forma, podia continuar lendo na língua materna e ele lia muito. Eu percebi também que a vida de Mengele já havia sido explorada em muitos livros na Europa e nos Estados Unidos, mas sempre com uma visão estrangeira. Faltava alguém contar como tinha sido a reação aqui no Brasil ao se descobrir que Mengele passou quase 20 anos no país e morreu em Bertioga, uma praia hoje tão conhecida para os paulistas e que, naquela época, era um point de europeus no verão. Outro ponto importante é que tive acesso a documentos das autoridades brasileiras, que são inéditos e pouco acessíveis para os pesquisadores estrangeiros.
VB&M: Em que tipo de documentação você está se baseando para escrever BAVIERA TROPICAL? Esses documentos nunca foram usados para a escrita de outras biografias e livros sobre o “Monstro de Auschwitz”?
BA: Eu tenho documentos inéditos, como o inquérito policial do caso, o dossiê da Polícia Federal e o processo contra Liselotte (que foi minha professora). Além disso, fiz muitas entrevistas no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha e em Israel. Descobri, por exemplo, fatos nunca revelados sobre a operação montada pelo Mossad, o serviço secreto israelense, para sequestrar Mengele aqui no Brasil. Também pesquisei os jornais e telejornais da época. E, para dar o pano de fundo histórico, recorri ao que existe de mais novo na historiografia do caso, na Alemanha, Polônia e Argentina. A cereja do bolo desse livro, sem dúvida, são as dezenas de cartas que encontrei no Museu da Polícia Federal em Brasília. É um material riquíssimo que dá um panorama inédito sobre o estado mental de Mengele nos seus últimos anos de vida.
VB&M: Como se explica que Mengele tenha conseguido viver incógnito por quase 20 anos no Brasil? Qual a condição sine qua non que permitiu essa longa permanência?
BA: Mengele contou com a ajuda financeira de sua família, sem dúvida, o que foi um fator fundamental. Mas quem realmente o protegeu foi um pequeno e fiel grupo de europeus expatriados que estavam dispostos a ajudá-lo até o fim. A ponto de a austríaca Liselotte ter enterrado o amigo com nome falso para ninguém descobrir que ele tinha morrido. É realmente impressionante a fidelidade desse grupo. Os documentos trazem detalhes interessantes. Um dos amigos de Mengele quis ajudar outro nazista, Franz Stangl, comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibór, e que também estava escondido no Brasil. Mengele não deixou porque ficou com medo de que isso pudesse aumentar sua própria exposição. Ou seja, Mengele recebeu muito apoio de europeus aqui em São Paulo, porém, não estava disposto a fazer o mesmo por outros nazistas.
VB&M: Qual o custo emocional desse livro para você? O que espera em retorno?
BA: Sou apaixonada por história e por jornalismo, então este livro me prendeu visceralmente durante todo o processo. Certamente, foi muito sofrido ler e ouvir o relato das vítimas de Mengele. Algumas cenas não me saem da cabeça, como quando ele decidiu enfaixar o peito de uma mãe para descobrir quanto tempo um bebê conseguiria sobreviver sem leite. Apesar dessa parte extremamente dolorosa, foi muito gratificante descobrir cada fato novo, me aprofundar no contexto histórico e poder, finalmente, explicar tudo aquilo que nunca tinha entendido desde a minha infância.