LITERATURA NO SANGUE

Rodrigo Lacerda tem longa carreira no mercado editorial. Também tem o mercado editorial no sangue. Neto de Carlos Lacerda, filho de Sebastião, sobrinho de Sérgio, não só nasceu no meio de livros, mas no coração da indústria editorial. Não surpreende que seja não só editor, como autor e tradutor. Sua própria obra publicada cobre ficção e não ficção; traduziu autores como Alexandre Dumas, William Faulkner e Arthur Conan Doyle. Como editor, atuou na Nova Fronteira e na Nova Aguilar, fundadas por sua família, e na Cosac Naify. Recentemente, assumiu a editoria executiva nas áreas de literatura brasileira e não-ficção estrangeira das editoras Record e Best Seller, substituindo Carlos Andreazza em um momento em que o mercado está passando por profundas transformações. Nesta Conversa Com (A) Gente, Rodrigo faz um balanço de seus sete meses de casa, fala sobre os desafios de sua nova posição, a identidade que pretende imprimir à editora e os títulos que tem prospectado, entre estes, GRANDES FILÓSOFAS, do alemão Armin Strohmeyr, que contratou com a VB&M assim que assumiu o cargo. Ele também comenta sua carreira como escritor e tradutor, as especificidades de cada uma dessas facetas profissionais e as formas como se entrelaçam. Sobre a recente não renovação pela Record da obra de Olavo de Carvalho, uma das marcas da gestão Andreazza e grande sucesso de vendas da editora, ele diz ter sido acertada e explica por que se fez necessário o anúncio público : “Basicamente, esperamos que nossos autores não apenas apresentem uma pluralidade de ideias dentro do nosso catálogo, mas que eles também zelem pela pluralidade de ideias no âmbito do espaço público”.

VB&M: Com quase sete meses de casa, qual o balanço que você faz de seu trabalho no Grupo Record?

RL: O balanço é muito positivo. A transição foi suave, surgiram ótimos livros que puderam ser encaixados na programação deste ano e, para o ano que vem, estamos programando um grande esforço de valorização da linha de literatura brasileira, com novos autores e autoras de todos os cantos do país. Sem abandonar as linhas editoriais já existentes, outras serão abertas e teremos um mix mais variado, mais plural e sempre com muita qualidade.

VB&M: Qual o seu foco neste momento para a editora? Que tipos de livro está buscando mais atentamente?

RL: Uma característica da editora Record é justamente publicar todo tipo de livro – literatura brasileira, história, ciências sociais, reportagem etc., e a ideia não é mudar isso, pelo contrário, mas sim ampliar ainda mais esse leque. Na área de literatura brasileira, entre os escritores contemporâneos, contratamos, por exemplo, três livros do escritor João Paulo Cuenca, entre eles, dois inéditos, e entre nossos autores clássicos teremos também novidades, como por exemplo o livro inédito “Graciliano e o modernismo”, que reunirá textos de Graciliano Ramos sobre o tema. Na área de não-ficção, a ideia é acrescentar outras linhas, como por exemplo relatos de viagem feitos por grandes escritores nacionais e estrangeiros. Estamos buscando livros que, embora sendo de não-ficção, tenham texto de alta qualidade literária. E, claro, procurando livros que tratem dos assuntos mais prementes do nosso tempo, como as reestruturações necessárias para lidar com a crise climática, as novas tendências políticas, as mudanças no trabalho provocadas pela pandemia etc.

VB&M: O primeiro livro que você contratou com a VB&M ao assumir a Record foi GRANDES FILÓSOFAS, de Armin Strohmeyr. Qual a importância desse livro para o novo catálogo da editora?

RL: Acho que esse livro ilustra bem o que eu disse sobre ampliar a variedade das publicações da área de não-ficção. “Não-ficcão” é um conceito em que cabem inúmeros gêneros. Esse livro faz uma boa introdução_ sem ser hermético nem tampouco superficial_ ao pensamento de algumas pensadoras brilhantes, ora mais conhecidas do grande público, ora menos, mas todas muito interessantes e diversas entre si. Além disso, acho importante que o catálogo da Record valorize a contribuição das mulheres para a história da filosofia, em todas as épocas, uma vez que o livro não fala apenas de filósofas contemporâneas.

VB&M: O fato de seu avô Carlos Lacerda e o fundador da Record, Alfredo Machado, terem sido amigos e estabelecido fortes laços entre suas editoras contém um significado especial para você, ou o remoto passado familiar não conta mais neste seu momento profissional?

RL: Eu sempre trabalhei em editoras que eram, na essência, editoras familiares, de porte médio ou pequeno. Passei pelas editoras Nova Fronteira e pela Nova Aguilar, pela Cosac Naify, pela Mameluco Produções Artísticas (do historiador Jorge Caldeira), e pela Edusp, que não era familiar, mas era de porte médio. Trabalhar pela primeira vez em um grupo editorial com tantos selos e uma equipe tão grande é muito estimulante, e é bom saber que a Record pôde crescer como cresceu sem recorrer a capital externo, mantendo seu caráter familiar. O fato de meu avô Carlos e do fundador da Record Alfredo Machado terem sido amigos e até sócios_ na origem da Nova Fronteira, o Alfredo era um dos sócios e ajudou muito a editora na sua decolagem_ é mais um fator que contribui para a sensação de que estou entre pessoas amigas e trabalhando harmonicamente para um mesmo objetivo.

VB&M: Uma pergunta enviada pelo economista e tradutor Alberto Flaksman, amigo de sua família de tantos anos – Não é sempre que se vê um escritor já publicado à frente de uma editora ou no papel de diretor editorial, como é o seu caso no Grupo Record. De que forma isso afeta o seu trabalho e o seu relacionamento com seus autores?

RL: É uma questão sensível, pois preciso deixar de lado as amizades com meus colegas escritores ao fazer a seleção dos livros para publicação. Muitas vezes, por um motivo ou por outro, é sofrido recusar algum livro, e preciso que os autores que eventualmente eu não consiga absorver tenham a compreensão desse meu papel duplo, de escritor e editor. Mas tento dar a eles o melhor atendimento possível: sem demorar demais a dar respostas, estando sempre acessível, valorizando-os nas estratégias de divulgação e de marketing etc. A vantagem que compensa essa dificuldade estrutural é que, ao trabalhar nos livros com os autores, tenho um olhar que vai além do olhar do editor, e posso dar sugestões e oferecer soluções formais e de conteúdo que talvez não pudesse se não fosse também escritor.

VB&M: Em sua trajetória no mundo do livro, você acumula experiências bem sucedidas como escritor, tradutor e editor. Qual é a ocupação mais desafiadora?

RL: Todas elas têm seus desafios, mas de todas, para mim, a mais tranquila é ser tradutor. O texto já está lá, em sua forma final, e a dificuldade é apenas transpô-lo para a nossa língua. Já o trabalho como editor apresenta a dificuldade de não apenas encontrar grandes livros, mas se antecipar à concorrência, que para o bem do mercado editorial cresceu muito nos últimos anos. Mas para mim a vertente mais difícil da minha atuação é ser escritor, pois é o espaço onde você lida com suas potencialidades e seus limites de forma mais radical. Mas, na verdade, quando faço um balanço da minha vida profissional, vejo que eu só me completo quanto enxergo as três vertentes juntas. Traços meus que eventualmente não aparecem nos meus livros podem aparecer nos livros que edito, ou nos que escolho para traduzir, e vice-versa.

VB&M: Ainda sobre sua carreira na escrita, como você encara a tarefa de editar a própria literatura?

RL: Todo escritor é também editor dos seus textos. E ele costuma ser melhor escritor quanto melhor souber editar o que escreveu. Nesse sentido, acho que sou como todo escritor, alguém que trabalha e retrabalha incessantemente o texto, no sentido de transformá-lo no melhor condutor das ideias e das emoções em jogo no romance ou no conto.

VB&M: Recentemente, a Record comunicou a não renovação dos contratos de “O imbecil coletivo” e “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, de Olavo de Carvalho, dois enormes sucessos de venda da editora. Foi uma iniciativa sua? Por que o anúncio público nesse caso?

RL: Uma vez que correu a notícia da não renovação dos contratos dos livros do Olavo de Carvalho, era preciso que a editora se posicionasse e explicasse a decisão. Acredito que tenha sido acertada e fui, pelo cargo que ocupo, o porta-voz. Basicamente, esperamos que nossos autores não apenas apresentem uma pluralidade de ideias dentro do nosso catálogo, mas que eles também zelem pela pluralidade de ideias no âmbito do espaço público. Discordâncias são normais, até porque, como escreveu T.S. Eliott, “Eu sei que a História produz as mais estranhas consequências a partir das causas mais remotas”, ou seja, ninguém controla o processo histórico e ninguém pode ter certezas absolutas nesse campo, mas a valorização do contraditório é algo importante em si.

VB&M: Que análise você faz da situação atual do mercado editorial brasileiro e, mais especificamente, da ficção brasileira contemporânea, da qual você faz parte?

RL: O mercado editorial brasileiro sofreu, de 2015 para cá, uma das maiores crises de sua história, se não a pior: as compras governamentais cessaram por um tempo, duas das grandes cadeias de livrarias ficaram à beira da falência, enfim, problemas de várias ordens. Apesar da pandemia – ou talvez por causa dela, na medida em que as opções de lazer se reduziram drasticamente –, o mundo do livro se fortaleceu novamente. Contudo, o mercado editorial tem agora o desafio de manter vivas as livrarias físicas, conciliando esse esforço com o boom das livrarias virtuais, que é muito bem vindo.