IDENTIDADE FEITA DE MEDO, OBEDIÊNCIA E ESQUECIMENTO

A ENTREVISTA de hoje é a maneira que VB&M encontrou de homenagear o povo ucraniano que vem sofrendo a medonha, bárbara, vil guerra de Pútin contra o país deles. A cliente Kiwi Verlag representa a grande romancista Tanja Maljartschuk, ucraniana que vive na Áustria, autora de A BALEIA AZUL DAS MEMÓRIAS, lançado primeiro na Ucrânia em 2016, depois na Alemanha, em 2019. Centrado na figura do herói nacional Vyacheslav Lypynsky, que se torna o alter ego da frágil mas corajosa protagonista, o romance de Tanja ganhou amarga atualidade neste momento. Premiado pela BBC como Livro Ucraniano do Ano em 2016, A BALEIA AZUL DAS MEMÓRIAS está atraindo a atenção do mundo editorial internacional: uma narrativa inteligente e profunda que revela como se vive e sente quando a própria identidade foi construída sobre o medo, a obediência e o esquecimento. Tanja Maljartschuk, que é também vencedora do Prêmio Bachmann, deu a Jürgen Deppe, da NDR, no dia 25 de fevereiro, essa entrevista, que Anna Luiza Cardoso traduziu do alemão para os amigos que compartilham com a VB&M e o mundo das pessoas capazes de sofrer pela dor alheia a frustração por não saber como fazer para mitigar a tragédia ucraniana.

Traduzida do alemão por Anna Luiza Cardoso

JD: Como você se sente ao escutar, ver e ler as notícias de seu país?

TM: Essa é certamente a pior experiência que já vivi em minha vida. Eu pensava que 2014 teria sido a pior, mas estava enganada. Apesar de já se poder supor, então, que a Ucrânia ainda não estaria livre. Neste momento, milhões de pessoas estão alojadas em bunkers e estações de metrô, fugindo do país ou lutando por ele. Para mim como ucraniana, é extremamente difícil ver essa situação de extrema injustiça. Também vejo essas pessoas que tão corajosamente defendem seu país. Essa coragem, elas têm em si. Eu sou uma pessoa tão ansiosa que nunca conseguiria fazer isso. Eu admiro essas pessoas.

JD: Você tem contato com pessoas que estão lá? Uma parte de sua família ainda vive na Ucrânia, além de amigos e conhecidos. O que te contam de lá?

TM: Estou constantemente em contato com muitas pessoas de lá. Uma amiga fugiu com o filho no meio da noite dos arredores de Kiev, onde ocorriam bombardeios pesados. Graças a Deus nada aconteceu com eles. Eu passei essa noite inteira me perguntando se eles estariam bem. Tenho tentado apoiar muita gente. Acho que é o meu dever, daqui deste lindo país onde vivo. Meus pais estão agora no oeste da Ucrânia. Claro que eu queria que eles também viessem ficar comigo na Áustria. Já tive várias conversas com eles, porque acredito no pior, mas minha mãe me disse que fica onde jazem seus mortos. Desculpe, eu vou chorar de novo, mas isso é normal, eu choro o tempo todo agora. Eu não durmo há quase oitenta horas porque dormir dá medo. Acordar dá medo, porque não se sabe que notícias vamos ler. Isso é o pior. Todo dia há um pouco de esperança, mas aí de repente o pior acontece de novo. É uma montanha russa o tempo todo, você é constantemente confrontado com a morte. Isso é o que eu não suporto mais. Meu marido não para de pensar em quantas vidas estão em jogo. Você tem uma ligação com essas pessoas, você está em contato com elas – elas são meus pais, meus amigos, amigos de amigos. Guerra – isso é terrível!

JD: O que acontecerá com o país se tantas pessoas o deixarem agora?

TM: Eu diria que esse era o plano, que muita gente deixasse o país por medo. Embora todos esperassem por isso, ninguém realmente achava que o ataque se consolidaria. Eu não tinha nenhuma dúvida de que sim. Na noite anterior, eu não dormi. Eu sabia que ia acontecer. E quando aconteceu, foi um choque para todo mundo. Os ucranianos não são guerreiros. Às vezes são grandes heróis, como agora, por exemplo, mas a guerra não é de sua natureza. Eles não querem guerra, são agricultores pacíficos que gostam de cantar e comer bacon. E de repente acontece algo assim e dá um medo enorme pelas crianças, pelas mulheres. Não se sabe o que aconteceu, qual o plano por trás. Nós vemos que o plano era terrível: deixar o país inteiro em chamas. Claro que as pessoas estão fugindo.

JD: O que os ucranianos esperam do Ocidente agora? Na base, estamos condenados a ser espectadores. Mas o que poderíamos fazer?

TM: Nunca antes a Ucrânia recebeu tamanha solidariedade. Nunca foi como agora. Na Áustria, onde vivo, é inacreditável quanta gente tem se mostrado solidária. Eu recebo quase cem mensagens por dia, pois sou a única ucraniana que essas pessoas conhecem. Todas querem me expressar sua preocupação. É até um pouco demais pra mim, pois não tenho forças. Eu preciso apoiar os ucranianos e não aqueles que agora também estão ficando com medo. Todos poderiam ter suposto anteriormente o que estava acontecendo. Não são só os ucranianos que são vítimas de Putin, mas todos na Europa ocidental, que também não estão em segurança. Ninguém está em segurança. Eu acho que os políticos e diplomatas sabem o que precisam fazer: precisam pressionar intensamente o regime de Putin para que este oscile, para que o próprio Putin sinta medo. Não há outra forma de se lidar com esses agressores. Certamente, é preciso tentar todas as formas de diálogo, mas não se pode demonstrar medo. Senão estaremos todos perdidos.