Narrativas & Depoimentos encerra a semana com o conto inédito “Filhos das nuvens”, na incomparável voz narrativa de Fabiane Guimarães, autora de APAGUE A LUZ SE FOR CHORAR (Alfaguara). Em um futuro não tão distante, quando a cultura analógica foi absorvida pelo mundo digital, a história acompanha uma mulher decidida a purgar seu apartamento dos pertences do marido para receber a visita da filha.
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“Filhos das nuvens”
Por Fabiane Guimarães
Descobriu sobre o aplicativo na fila do supermercado, ouvindo uma conversa entre estranhos. “É simples, com um toque, um clique, eles vêm e recolhem seu lixo. É uma revolução”, o sujeito falava, empolgado.
Carregando as compras na maleta inflável, os ouvidos recolhidos, Zilda esforçou-se para não apagar a dica da cabeça. Ainda tinha certa dificuldade em lidar com aqueles novos celulares, mas enviou a mensagem. O moço do lixo chegaria às três.
Imaginou que fosse receber um ser humano maltrapilho, com costelas aparentes, uma crosta de sujeira encobrindo o rosto, os braços a arrastar carroças bamboleantes, mas percebeu que pensava nos catadores de antigamente. Os que não haviam sobrevivido, que nunca poderiam ter sobrevivido. Recebeu, em vez disso, um rapaz bastante bonito e bem vestido, que poderia ser seu filho.
“Não repara a bagunça”, ela se esquivou para deixá-lo entrar, todo menino homem com sua barba bem aparada. Com sua camisa verde de tecido vegano.
O garoto não disse nada. Abriu o primeiro baú com gentileza, sem preconceito. Toneladas e toneladas de papéis amortecidos, carimbados por marcas de café, transbordavam poeira. Eram bilhetes, promissórias, recibos apagados, quase translúcidos, contas de luz pagas com seus respectivos boletos, cupons de estacionamentos e até mesmo algumas cartas de amor. Garantias de papel que ela só guardava – costumava guardar – pelo pavor de perder.
Hoje em dia não era tão fácil colecionar. Eram todos filhos das nuvens. Nascidos e criados nas fronteiras digitais. Zilda gostava de reter seus pequenos tesouros, quando encontrava um, junto ao peito. Gostava da textura do papel, como se as mensagens assim físicas tivessem mais sentido. Era uma das coisas a seu respeito que Augusto odiava. Sabe quantas árvores precisaram morrer para você guardar isso?
Sabe quantas de mim precisaram morrer para me livrar de você?, diria agora.
O rapaz ficou satisfeito. Papel devia render bem. Zilda teve ímpetos de perguntar se ele sabia escrever à mão. Na época em que era professora, e isso fazia pelo menos trinta vidas, gostava de forçar seus alunos a praticarem uma hora ou meia de caligrafia. Mesmo que não precisassem, mesmo que o exercício da escrita e da leitura se perdesse na imensidão gelatinosa dos pixels, uma comunicação inteiramente permeada por telas e teclas, de uma geração que não sabia empunhar um lápis.
Não, o rapaz não sabia. “Minha mãe tentou, uma vez, achava importante”, ele disse. “Mas nem ela se lembrava direito.”
“Eu sempre tento escrever um pouco, para não me esquecer”, Zilda respondeu. “Mas fica difícil com o tempo. Tudo fica tão complicado com o tempo.”
Depois dos papéis, eles avançaram às roupas. Algodão e elastano, fibras sintéticas, o poliéster engordurado dos antigos hábitos. O rapaz arrancou do armário uma quantidade enorme de ternos e camisas, de quando Augusto trabalhava naquele escritório de advocacia elegante, dando assistência técnica aos pequenos cachorros da lei, protegido por monitores gigantes. Era assim que tinha aprendido a se esconder?
O rapaz disse, depois de recolher tudo no mesmo silêncio: “sinto muito pelo seu marido.”
“Ele não está morto”, ela resmungou.
Augusto não estava morto, mas flertava com a ideia. Confinado naquele prédio desmantelado que engolia gente, um presídio com esta alcunha tão adequada de Papuda. Na última visita, ela não conseguiu olhá-lo. Não o reconhecia agora, mas fazia tempo que experimentava uma espécie de estado dissociativo. Como se ela, e ele, tivessem ficado presos em uma outra dimensão e restassem apenas espectros, uma sombra de memória.
Mas Zilda ainda o visitava, para espanto geral. Não que tivesse qualquer tipo de obrigação moral, não que alimentasse sentimentos de amor e de perdão. Talvez quisesse entender. Entendendo, achava, podia seguir em frente.
Não estava ficando mais fácil. Abrir os olhos, manter a higiene em dia, seguir respirando, tentar sair e procurar alguma distração para preencher o vazio. Fazer as compras. No começo, era revirada ao avesso pelas perguntas dos curiosos que se achavam íntimos.
Vem cá, você nunca desconfiou?
Nunca percebeu nada diferente?
E ouvia até mesmo as perguntas que não eram ditas:
Será que ele fez alguma coisa com as crianças daqui?
O rapaz do lixo partiu com suas imensas sacolas de pano recheadas. Tinha um sorriso aberto, encantador, e Zilda sentiu qualquer coisa quente e caudalosa no peito. Ele devia ser o amor da vida de alguém, com certeza. Eram facilmente reconhecíveis as pessoas muito amadas.
Depois que ele partiu, ela se sentou na sala e presenteou a si mesma com uma xícara de chá. Sentia-se vazia como sempre, talvez um pouco inquieta, entretanto satisfeita. Estava certa em se livrar de tudo. Era um passo rumo a qualquer coisa que parecia superação. Talvez fizesse diferente de agora em diante.
Era quarta-feira, por exemplo, quarta-feira era dia de visitas. Zilda, entretanto, não pegou a bolsa e calçou seus mocassins. Foi vendo a luz da sala ralear, sem se mover para tocar o interruptor na parede. Sem cair na tentação de enxergar, porque era verdade o que diziam sobre ela. E era verdade que não visitaria Augusto hoje, nem nunca mais.
Ele sempre tinha sido normal. Não perfeito que se criasse dúvidas. Nem imoral ou agressivo. Apenas normal. Acordava cedo, fazia a barba, trabalhava. Voltava na hora especificada e jantavam alguma coisa da rua, na época em que ela lecionava nos dois turnos. Assistiam juntos a qualquer novidade do entretenimento. Dormiam. Sem sobressaltos. Um menino criado na periferia, em Ceilândia, que tinha conquistado um diploma técnico com muita coragem e crescia para ser apenas um homem ordinário.
É verdade que ele passava as horas vagas enfiado em seus computadores, na garagem, montando e desmontando peças, examinando a tela com o rosto macilento parcialmente iluminado, sem um sentimento que fosse, mas também sem um sinal de perversão. Até aí, Zilda também vivia amortecida por suas próprias compulsões, suas receitas de bolo, sua coleção de papéis. Quem poderia dizer?
Nas ocasiões em que se encontravam na cama – no começo, bastante; menos, depois – tampouco havia qualquer suspeita. Juntos apanhavam um bonde rumo ao intercurso de carne, que durava pouco e era suficiente. Hoje em dia Zilda tinha nojo, tinha remorso, por ter se divertido tanto.
Nada disso importava agora, é claro, porque Marina viria para o jantar. E ela poderia dizer, à guisa de convencimento e cartão de visitas, que estava livre das coisas contaminadas. Do passado de papel e as roupas de um homem que não era defunto. Poderia, enfim, dizer que não visitava Augusto nunca mais.
Fez lasanha, comprou vinho, porque Marina gostava. Estava nervosa como quem recebe uma desconhecida, uma desconhecida que tinha fabricado em suas próprias entranhas, o que podia ser o pior tipo de estranho. Ela avisou que levaria o noivo. Zilda achava que isso era um sinal reluzente de progresso. Uma pequena brecha, como uma porta entreaberta, para que voltasse a fazer parte de sua vida.
Mas quando ouviu o endereço, ao telefone, Marina respirou fundo. Zilda até teve medo de que fosse desistir.
“Por que você não se mudou, mãe?”, foi o que ela perguntou.
“Porque é a minha casa.”
Zilda, diferentemente do resto do mundo, achava óbvia a necessidade de permanecer. Reconstruir-se a partir do mesmo ponto isolado do universo onde tinha se construído antes e virado pó, reaproveitando as cinzas. Muito melhor do que partir e tentar ser alguém no marco zero da destruição.
Era sua casa. Só sua.
Então eles chegaram, e não houve constrangimentos excessivos, exceto aquela pálida e cristalina distância que envolve os estranhos em comunhão. Zilda teve assunto para falar, com a história do rapaz do lixo e o limpa em seus armários, não foi de forma alguma desagradável. O noivo, um homem alto de ombros retos e beleza indecente, era piloto. Com frequência, fazia parte da mesma tripulação que Marina. Marina e seu gosto pelas nuvens. As nuvens de verdade.
A menina se ofereceu para lavar a louça, depois do jantar. A uma distância respeitosa, Zilda ficou observando o rosto delicado, o nariz arrebitado de uma longa linhagem sua, os cabelos pretos delicadamente penteados para trás. Não se viam há oito anos, pelo menos, mas parecia que nunca tinham deixado de se ver, porque uma morava dentro da outra, porque tinham a marca do reconhecimento no corpo.
Zilda achava que deveria pedir desculpas, mas Marina disse que ela não precisava. Marina que estava muito à frente dela. Era quase como o rapaz do lixo. De impressionante lucidez. Um tipo de existência que impressionava Zilda até mesmo durante seus tempos de professora, quando se deparava com os pequenos iluminados: como era possível que os jovens fossem mais sábios, melhores, do que os velhos?
“Pode perguntar, mãe”, Marina pediu, secando as mãos. Pronta para o embate.
Zilda não conseguia, a garganta travava. Precisou chorar para conseguir abrir a boca.
“Ele fez alguma coisa com você, quando você era menina? É por isso que você foi embora, que você nunca me visitou?”, a voz enfim saiu, um miado desajeitado.
Marina, com o perfil sério, estendeu os braços para acalentá-la. Zilda sentiu-se pequena e chorou ainda mais, como se fosse ela a filha, e não a mãe.
“Ele sempre disse que nunca fez nada” – sussurrou, convulsionando, antecipando-se à resposta da filha. “Que eram só fotos. Só as fotos.”
Marina queria responder. Estava preparada para isso. Vinte e seis anos de preparação.
“Ele nunca encostou o dedo em mim. Não foi por isso que fui embora. A senhora foi uma boa mãe”, disse. “Vou estar mais presente de agora em diante.”
De repente, era um alívio que ardia. Um conforto que percorreu cada um dos caminhos internos de Zilda, porque há muito tempo esperava por essa resposta. A filha intacta. A salvo.
Mas agora Marina iria embora de novo. Ela e o noivo. Convenientemente de passagem. Tinham um voo naquela noite mesmo, rumo a Manaus.
“Muito obrigada pela refeição, dona Zilda”, ele agradeceu. E não era mesmo muito educado, muito bonito? Zilda teve orgulho de sua menina genial que sabia perdoar os homens.
Encantada, depois de se despedir do casal e organizar a mesa de jantar, Zilda até se permitiu outra tacinha de vinho, que tomou sozinha antes de dormir. Muito mais leve, tanto de seus entulhos, quanto de suas dúvidas.
***
No caminho do aeroporto, Marina chorava tanto que precisaram parar o carro. Não conseguia respirar. Ele, acostumado aos ataques de pânico, segurou-lhe as mãos, como tinha aprendido a fazer há muito tempo, e respirou junto com ela.
“Por que mentiu, se sabia que ia te fazer mal?”, perguntou, quando a crise passou. “Por que não contou a verdade para ela?”
Marina não conseguia explicar. Enquanto refazia a maquiagem, e retocava a paz que precisava estampar nos olhos macios, só não conseguia explicar o quanto as duas precisavam disso.