ESPERAR O INESPERADO: LIÇÃO DA PANDEMIA

Na época em que aconteciam feiras literárias (parece um passado remoto, mas estamos falando de 2019), o sorriso da holandesa Marleen Seegers era o raio de sol que brilhava naqueles imensos salões iluminados com fria luz branca, onde ficavam abrigados os centros de agentes em Frankfurt e Londres. Diretora da 2 Seas Literary Agency, que fundou com Derek Dodds em Ojai, na Califórnia, em 2011, hoje Marleen Conversa Com (A)Gente sobre o que significou 2020 para o mercado internacional do livro e seus planos para 2021. Depois de terminar seus estudos na Sorbonne, ela viveu em Paris por quase uma década trabalhando com direitos de tradução em diferentes editoras até criar a poderosa 2 Seas, que agencia os clientes brasileiros da VB&M na Holanda, na Escandinávia e para a língua inglesa em geral (EUA, Grã-Bretanha e outros territórios), e cujos catálogos sensacionais VB&M representa no Brasil. Com profissionais espalhadas pela Europa e pela América do Norte, a 2 Seas negocia direitos de tradução dos catálogos de 15 editoras internacionais nos dois continentes, têm parcerias com dezenas de agentes no mundo todo e fecha uma média de 250 contratos literários por ano. Para Marleen, a pandemia ensinou a esperar o inesperado; nesta entrevista ela comenta sobre o que é morar na Califórnia hoje em dia e como, depois de dez anos nos EUA, a sociedade americana segue como um mistério para ela.

VB&M: Como você avalia o impacto da pandemia de Covid-19 e outros eventos dramáticos de 2020 sobre a agência 2 Seas e sobre o mercado internacional do livro de modo geral?

MS: Depois de vários países entrarem em lockdown severo na primavera de 2020, e as livrarias terem fechado, muitos editores observaram a recuperação de seus mercados no verão e no início do outono. Vários editores me disseram que as pessoas estavam gastando mais dinheiro com livros porque já não tinham o acesso de outros tempos a atividades culturais como teatro, cinema, museus ou a ópera.

De meados de março ao final de abril, recebemos poucas ofertas de adiantamento por direitos literários. A partir de maio, voltamos a receber propostas de países do sudeste asiático como Coréia do Sul, China e Japão, em um momento em que a pandemia e o consequente isolamento social diminuíram ou mesmo paralisaram as aquisições em outros lugares. Quando começou a progressiva suspensão da quarentena na Europa por volta de maio e junho, os editores ainda estavam concentrados principalmente em mudar suas estratégias de marketing e/ou reprogramar lançamentos para o resto do ano, e pareciam prestar menos atenção às submissões de novos títulos.
Um grande número de lançamentos que deveriam acontecer na primavera foi adiado para o outono de 2020, ou para mais tarde ainda. Isso causou um efeito dominó na programação de lançamentos.

À exceção de algumas negociações durante o verão (no Hemisfério Norte, como em todas as seguintes referências a estações do ano nesta entrevista – NT), as vendas de direitos de tradução só voltaram a crescer nitidamene em setembro. Continuam firmes desde então, ainda que um pouco mais lentas do que o periodo imediatamente anterior à pandemia. No calendário pré-Covid, as vendas geralmente aconteciam antes de a Feira de Frankfurt começar de fato. Em 202, porém, senti que o ritmo dos negócios foi mais balanceado e espaçado, pelo menos para nós, uma vez que recebemos ofertas tanto antes quanto depois da feira, após nossas reuniões virtuais.

Quando a segunda onda da Covid chegou, no fim do outono, e os países voltaram ao isolamento (parcial), as livrarias tiveram de fechar novamente. Algumas, inclusive nos Países Baixos, permaneceram ram fechadas ao longo de dezembro, normalmente a época mais movimentada do ano para a venda de livros.
Ainda veremos a dimensão do impacto financeiro sobre o mercado internacional do livro, e quantas livrarias – especialmente as independentes – sobreviverão. Temos um longo caminho pela frente até que as lojas de varejo retomem um funcionamento normal.

Penso que a tendência que vimos nessa última década – de os autores bestsellers venderem cada vez mais, enquanto vão encolhendo os títulos da “midlist” (termo inglês para livros de recheio de catálogo, que não nascem vocacionados para o grande sucesso, ou não são vistos assim à época do lançamento – NT), será ainda mais visível. Mas é difícil prever o que realmente acontecerá em 2021 e depois. Ainda há tantas variáveis, desde não saber quando as feiras literárias retornarão até o impacto permanente da pandemia no mercado editorial. Se há algo que a pandemia me ensinou, é esperar o inesperado.

VB&M: Quais foram as mudanças introduzidas nas rotinas da agência a fim de enfrentar esses tempos difíceis, e que você acredita que deverão continuar valendo no pós-pandemia?

MS: Trabalhávamos remotamente quase desde o início da agência em 2011; fomos poupados dos desafios de deslocar o trabalho para as nossas casas quando a pandemia de Covid-19 começou a se espalhar na primavera passada. Nosso escritório virtual continuou funcionando como de costume entre Nicósia, em Chipre, onde a agente sênior Chrysothemis Armefti está alocada (atualmente de licença maternidade), e Ojai, Califórnia, onde moro com meu marido e co-fundador da agência Derek. Em meados de março, quando nada estava acontecendo em nosso ecritório, tive de reduzir temporariamente as horas de trabalho da assistente de direitos estrangeiros Nikoleta Koukmisi, que se juntou à agência no início de 2020, baseada em Raleigh, Carolina do Norte, e da assistente administrativa Irma Rivera, alocada a 64 quilômetros de Ojai. Quando rotinas foram retomadas no início do outono, todos voltaram a trabalhar as suas horas normais.

Antes da pandemia, Irma costumava vir ao escritório de Ojai uma vez por semana para supervisionar a nossa correspondência, e ela já não vem desde março. Agora cuido disso, o que no fim das contas não é tanto trabalho extra: muito da antiga costumeira papelada, como os contratos e as declarações de royalties, foi digitalizado.
Para mim, este é um dos pontos positivos da situação de trabalho remoto induzida pela pandemia. Abrimos uma conta no DocuSign para os nossos contratos em 2018, e já advogávamos pelas declarações de royalties digitais há um bom tempo. Gastávamos tempo demais rastreando os contratos físicos que se perdiam no correio em algum lugar entre a China e a França!

A maior mudança, no entanto, não foi escolhida por mim, mas imposta pela pandemia: ninguém de nós fez qualquer viagem de negócios internacional desde março de 2020. Viajar para agendar feiras – não limitadas àquelas em Frankfurt e Londres – e para os escritórios de editores internacionais faz parte do DNA da agência desde a sua fundação.

VB&M: Quais foram as maiores conquistas da 2 Seas no ano passado?

MS: De 2020, tenho muito do que me orgulhar, apesar dos (e, em algumas ocasiões, graças aos) tempos desafiadores que enfrentamos. Vou focar em dois momentos do ano.
Em meio à quarentena, durante a primavera na Europa e à nossa estrita ordem de fique-em-casa na Califórnia, quando o mundo realmente parecia desabar sob nossos pés, tive a oportunidade de representar os direitos norte-americanos de um romance inédito de Simone de Beauvoir intitulado “Les inséparables”. Vendemos os direitos rapidamente para a Ecco, em uma ótima oferta pre-empt. O acontecimento ganhou cobertura de um longo artigo do New York Times que mencionou a 2 Seas e meu nome. Já posso riscar o NYT da minha lista de metas para a vida.

A segunda conquista é o podcast que iniciei em abril, The Make Books Travel Podcast. Eu brincava com a ideia de começar um podcast há tempos. Quando a Covid-19 explodiu na Europa em fevereiro, tive de interromper uma viagem de negócios de cinco semanas pela Europa, após apenas cinco dias de reuniões, e retornei à Califórnia. Pouco tempo depois, o mundo tornara-se um lugar diferente. Como mencionei antes, enquanto todo mundo teve de se adaptar ao trabalho remoto, contar com um escritório virtual era o normal para nós da 2 Seas. Durante as muitas reuniões digitais que fiz nas semanas seguintes ao início da pandemia, que deveriam compensar as presenciais que eu teria na Feira de Londres e em outros lugares da Europa, fui perguntada mais de uma vez se eu tinha alguma dica para compartilhar sobre as melhores práticas do trabalho remoto. Isso levou-me ao primeiro episódio do podcast, “A agência literária virtual: Uma entrevista com Chrysothemis Armefti”, que publiquei no dia 17 de abril de 2020.

Desde então entrevistei profissionais da indústria do livro de todo o mundo, incluindo você (Luciana) e Anna (Luiza Cardoso) — que, aliás, é um dos episódios mais ouvidos! É um ótimo jeito de se reconectar com as pessoas nesse tempo em que não podemos nos encontrar pessoalmente. Os convidados do meu podcast fornecem informação em tempo real sobre como eles estão, o que está acontecendo nos seus países em termos de pandemia, lockdowns e afins, e como os seus mercados editoriais estão lidando com tudo isso. Fico muito contente ao compartilhar essa informação valiosa com outros editores profissionais, que estão ansiosos por sabê-las. Já recebi incontáveis mensagens de agradecimento, por vezes de editores e outros profissionais do mercado que eu ainda nem conhecia, o que levou a novas conexões e reuniões virtuais posteriormente.

Após uma pausa em outubro para focar em minhas reuniões da Frankfurt virtual, comecei a segunda temporada em novembro. São 26 episódios até agora, e já temos mais de 6 mil reproduções. Tem sido uma jornada incrível e aprendi muito (e agora domino o Garageband — antes de começar o podcast, eu não sabia por que esse aplicativo estava no meu computador). Gravar esses episódios do podcast acabou se tornando a segunda melhor atividade da agência (depois de encontrar pessoas em feiras do livro internacionais), e vale a pena cada minuto que gasto preparando as entrevistas e tudo o mais envolvido.

VB&M: Você planeja participar de feiras literárias em 2021? Planeja viajar à Europa para ver clientes e potenciais editores para os seus livros, como você tem feito desde o início da 2-Seas?

MS: A Feira de Londres é geralmente a âncora das minhas viagens à Europa no primeiro semestre do ano, mas dada a situação atual em termos de Covid-19, duvido que uma edição presencial acontecerá em junho. Estou torcendo pela temporada de outono, durante a qual espero comparecer à Feira de Frankfurt. Se possível, gostaria de visitar Paris e Amsterdã antes ou depois da feira. Depois eu adoraria passar um tempo com a minha família no sul da Holanda, a qual eu não vejo desde o início de março do ano passado.

VB&M: Qual é o futuro das feiras do livro?

MS: Tive reuniões durante a semana da Feira de Frankfurt virtual – no fuso horário europeu, então pude comparecer à maioria. Definitivamente, essa foi uma boa alternativa à feira presencial, e tenho certeza de que funcionou para mim apesar das nove horas de diferença no fuso horário. Mas espero não precisar repetir isso: uma feira literária virtual jamais substituirá a experiência da feira presencial. Todo mundo está ansioso para se reecontrar pessoalmente, e os eventos internacionais de negociações oferecem a oportunidade perfeita para se ver muitas pessoas diferentes num período curto de tempo. Na minha opinião, as feiras presenciais jamais desaparecerão. No entanto, já que muitas feiras literárias experimentaram e organizaram uma edição digital, algumas podem pensar em propor certos eventos virtuais paralelamente à edição presencial. Isso permitiria que pessoas que não podem ir às feiras participem do evento de alguma maneira.

VB&M: Você gostaria de apontar novas tendências literárias provocadas pela pandemia e quais estão particularmente bem representadas pelo seu catálogo?

MS: Em termos de não-ficção, que já estava em alta demanda desde antes da pandemia, e continua assim: livros sobre natureza e animais, o original holandês HOW ONE CRAZY ANT CAN CHANGE THE WORLD (Como uma formiga maluca pode mudar o mundo), de Arjan Postma, Meulenhoff Boekerij); memórias, guias práticos e títulos de autoajuda estão em alta. Atualmente estamos recebendo muito registro de interesse, e já fizemos várias vendas, no livro de autoajuda/livro de presente AGIR ET PENSER COMME LE PETIT PRINCE (Agir e viver como o Pequeno Príncipe), que ainda por cima traz os desenhos originais da obra de Antoine de Saint-Exupéry. Livros com uma abordagem feminista também continuam a gerar interesse, como L’HOMME PRÉHISTORIQUE EST AUSSI UNE FEMME, de Allary Editions, vendido por vocês para a Rosa dos Tempos).

Na ficção, percebi uma forte demanda da ficção escapista, assim como romances inspiradores baseados em histórias reais, como o holandês ANTONIA, UMA SINFONIA, de Maria Peters, originalmente publicado por Meulenhooff Boekerij, sobre a primeira mulher a reger as grandes orquestras do mundo, pelo qual nós continuamos recebendo fortes registros de interesse e foi vendido por vocês para a Planeta no Brasil. Nosso destaque atual, de novo um original holandês da Hollands Diep, é O JARDIM DE INFÂNCIA JUDEU, baseado na história real do resgate de cerca de 600 crianças judias em Amsterdã durante a Segunda Guerra. Clássicos como NASCITA E MORTE DELLA MASSAIA (Éditions de Lamartinière Littérature, vendido por você para a Instante, o título original italiano é “O nascimento e a morte da dona de casa”), de Paola Masino, também estão em alta demanda, embora novamente esta seja uma tendência iniciada antes da pandemia.

VB&M: Quais são seus projetos para o ano novo?

MS: Nessas últimas semanas, tenho pensado em implementar um novo sistema de comunicação para nossa equipe. Desde dezembro, temos duas novas integrantes na agência: Donatella, baseada em Roma e que se encarrega do mercado Italiano, e Katie, a estagiária que atua desde Berlim. Ainda que Chrys esteja agora de licença-maternidade, a equipe está crescendo, e sinto a necessidade de otimizar nossa comunicação interna. Temos usado Google Docs, mas já não nos está servindo mais. Sou meio a geek dos sistemas; acho que ter bons sistemas funcionando seja essencial para um ambiente de trabalho virtual eficiente e produtivo. Então, acredite ou não, esse é um dos projetos com o qual estou mais animada! Além disso, estou bastante envolvida em continuar o podcast — tenho três entrevistas programadas para as próximas semanas. Apesar de já ter experimentado outras áreas além de direitos de tradução e publicação comercial, como o mercado de audiolivros, eu adoraria cobrir outros segmentos do mercado editorial. Estou pensando em livros-às-telas, bibliotecas, didáticos, editoras universitárias… Ainda há tanto a se (des)cobrir. Aprendendo sempre!

VB&M: Para finalizar essa conversa tão rica, por favor, nos dê um depoimento sobre sua vida na Califórnia hoje em dia.

MS: Com a chegada do ano novo, eu esperava menos drama e mais paz e tranquilidade depois da avalanche de acontecimentos intensos que vivemos em 2020 (incluindo a Covid-19, o horripilante assassinato de George Floyd, os incêndios devastadores na Califórnia, a eleição presidencial e suas consequências). Essa esperança foi rapidamente despedaçada pelo ataque ao Capitólio na semana passada. Ainda não consigo acreditar que isso aconteceu.

Apesar de tudo o que testemunhamos desde que Trump assumiu o poder, confio que a justiça há de prevalecer, tanto para os transgressores quanto para o próprio Trump. Mas uma parte de mim pensa que esse pode ser apenas o começo, ainda há tanta dissensão nos Estados Unidos.

Ainda não compreendo totalmente esse país enorme, suas histórias, culturas e dinâmicas, apesar de estar morando aqui por quase dez anos. Tenho o grande privilégio de viver em Ojai, Califórnia, que é uma cidade pequena, uma espécie de bolha hippie progressista (embora isso não nos livre dos incêndios florestais). Estar próxima da natureza _ com o Oceano Pacífico a oeste, montanhas e parques nacionais a norte e leste _ tem me ajudado a manter minha sanidade e foco ao longo de 2020. E isso faz com que eu continue otimista sobre o futuro, pelo menos na maior parte dos dias.