ENTRE A ESTRELA E A SUÁSTICA

Narrativas & Depoimentos traz o capítulo inicial de A MENINA COM ESTRELA, novela de Luize Valente voltada para o jovem leitor, ainda em processo de criação, que contará a amizade de duas meninas, uma judia e uma alemã, Eva e Alma, com o pano de fundo da Alemanha nazista na II Guerra Mundial. Luize – que atualmente trabalha sobre sua magna opera, um portentoso romance sobre cristão novos na inquisitorial sociedade portuguesa do século XVI, CONFRARIA DAS OLIVEIRAS: UMA FAMÍLIA À SOMBRA DA INQUISIÇÃO – dedica-se à novela de Eva e Alma em pausas para respiro e descanso. A MENINA COM ESTRELA já exibe o poder encantatório que é a marca da autora. A partir do olhar inocente da narradora judia, a história questiona o antissemitismo e acompanha o amadurecimento das meninas e a sobrevivência na cidade alemã de Munique, entre setembro de 1941, quando o uso da Estrela de Davi tornou-se obrigatório para todos os judeus acima de seis anos, e abril de 1945, quando os americanos libertaram o campo de concentração em Dachau.

*

Era uma vez uma menina que nasceu com uma estrela. O nome dela era Eva. Era igual às outras meninas. Tinha dois olhos, uma boca, um nariz. Gostava de subir em árvores, brincar de esconder e fazer travessuras. Tinha muitos amigos na escola e na rua onde morava. Era uma garota popular. Quem olhasse para ela, não saberia que nasceu com a estrela. Não era algo que se notasse assim olhando. Nem ela pensava sobre isso. Afinal, a estrela estava na família muito antes do seu nascimento. Desde o tempo dos avós, dos bisavós e dos tataravós.

A estrela era como uma pinta na sola do pé, uma mancha na parte interna da bochecha ou até no estômago. Algo que existia mas ninguém via. Era parte dela, como sua cabeça, seu corpo, sua alma, seu coração.

Até que um dia os pais convocaram Eva para uma séria conversa. A palavra é convocar mesmo, não havia como escapar daquele chamado. No princípio, Eva teve medo. O pai era severo e ela, vamos falar aqui entre nós, gostava de aprontar. Foi uma conversa diferente. Era sobre a estrela. O que para ela soou absolutamente estranho e completamente sem sentido. Era difícil compreender por que algo que fazia parte dela desde sempre e antes de sempre fosse assunto de conversa séria.

Neste momento Eva soube que havia outras meninas e meninos que, como ela, tinham estrela. E bebês, como seu irmãozinho que ainda nem falava. E famílias inteiras também. A partir daquele dia todos teriam que mostrar a estrela. O pai lhe dissera que o mundo estaria dividido entre pessoas com estrela e pessoas sem estrela. O pai também contara que a estrela, num tempo muito distante, funcionara como escudo de proteção de um grande rei.

Eva perguntou então se não era injusto que nem todos tivessem estrela. O pai abriu a boca para responder mas, antes que uma palavra fosse dita, a mãe começou a chorar e deixou a sala. Eva achou melhor não insistir. Nos últimos tempos a mãe costumava chorar muitas vezes, do nada. Mesmo assim o pai segurou os braços dela, não com força, mas firme, e lhe disse que nunca renegasse aquela estrela. Eva balançou a cabeça e prometeu que nunca renegaria, embora não entendesse direito aquela promessa. Afinal, ter uma estrela era bom e ninguém renegava o que era bom. A estrela então foi costurada no sobretudo pela própria mãe. Era bem amarela e tinha seis pontas.

No dia seguinte, Eva soube também que não iria mais à escola do bairro. O pai, que era professor, ensinaria a filha e outras crianças em casa. O único requisito para ser aluno do pai de Eva era ter a estrela. Ora, o pai de Eva era um dos mais renomados professores da cidade e lecionava na universidade, embora há muitos meses passasse mais tempo em casa do que nas salas de aula. Talvez tivesse se cansado de alunos adultos. Era muita sorte dos que tivessem estrela terem como mestre o pai de Eva.

Eva lembrou-se imediatamente de sua melhor amiga, Alma, que morava na outra esquina. Alma era mais que uma amiga, era uma amiga gêmea. Eva e Alma haviam nascido no mesmo ano, no mesmo dia, na mesma cidade, na mesma rua, com algumas horas de diferença. Quem era a mais velha? Eva nasceu primeiro. Ora, mas na escola disseram que a gêmea mais velha é a que nasce depois. Então seria Alma a mais velha? O fato é que Eva e Alma eram inseparáveis.

Eva fez vários rodeios e finalmente perguntou ao pai se Alma poderia vir para a escola da casa. Ele nada respondeu, o que, na linguagem do pai, era não. Houve uma época em que o pai de Eva e o pai de Alma costumavam beber cerveja e fumar cigarros juntos. Mas nos últimos tempos eles mal se falavam. Eva e Alma preferiam não tocar nesse assunto. Afinal, os adultos eram bem diferentes em relação às amizades. Já tinha visto adultos que sorriam um para o outro e trocavam apertos de mão e, nas costas, faziam cochichos e gestos feios. Então Eva e Alma preferiam manter a própria amizade longe dos olhares adultos.

Eva foi para o quarto e passou a noite em claro pensando em como ajudar a amiga. No dia seguinte, Eva aproveitou que a mãe preparava mais uma sopa de ilha no mar – como ela costumava chamar secretamente os caldos onde boiavam, em meio a salgados temperos, uma batata ou uma cenoura – para correr até a casa de Alma. Já na rua, lembrou que deixara o sobretudo com a estrela amarela pendurado no cabide e voltou para pegá-lo. Ainda não era nem inverno mas os dias já estavam tão frios quanto as noites.

A casa de Alma, na verdade, era um apartamento. Não era grande como a casa de Eva. Nem tinha livros ou louças bonitas ou lençóis com bordados como na casa de Eva. Mas tinha um cheiro tão bom que falava diretamente ao seu estômago. A verdade, ela tinha que confessar, é que a madrasta de Alma não cozinhava melhor que sua mãe, muito menos que dona Helga, a cozinheira, mas havia na despensa da casa de Alma alimentos mais saborosos do que na despensa da casa de Eva. Eva tinha que admitir que, nos últimos tempos, as prateleiras andavam tão vazias como as panelas. A cozinheira fora embora. A mãe pouco saía. Então, quem iria repor a despensa?

Alma abriu apenas uma fresta da porta. Nem deixou Eva entrar. Mas o pequeno espaço foi suficiente para Eva perceber que Alma não trazia nenhuma estrela costurada no casaco. Alma disse que estava estudando e não poderia sair para brincar. Eva concluiu que Alma estava de castigo, afinal ela odiava estudar e Eva sempre a ajudava nas lições. A cabeça da madrasta de Alma surgiu de repente dois palmos acima na fresta e os olhos dela se fixaram nos olhos de Eva.

Eva se apressou para mostrar a estrela estampada no próprio sobretudo. O rosto da madrasta se transformou. Ela nem respondeu ao bom dia de Eva. O que para Eva foi estranho. Também não lhe ofereceu biscoitos de gengibre ou leite com canela. Apenas disse, secamente, que Alma estava muito ocupada e ficaria assim nos próximos dias. Encerrou a conversa ao mesmo tempo em que cerrava a porta. Tempo suficiente para Eva perceber o cenho franzido de Alma e a tristeza em seu rosto.

Eva voltou para casa cabisbaixa pensando como o mundo era injusto. Decerto, a madrasta de Alma estava brava porque Eva tinha uma estrela e Alma não. Sem estrela, Alma estudaria sozinha enquanto Eva teria o melhor professor do mundo. Mas logo o rosto de Eva se animou. Era um mal entendido. A mãe de Eva costuraria uma estrela no casaco de Alma e o pai de Eva falaria com o pai de Alma. Eva pouco o via. Alma lhe contara que o pai agora tinha um emprego importante graças a um tio dela que era da nova guarda da cidade. Por isso andava sempre ocupado. Em breve, o pai prometera, se mudariam para uma casa tão bonita e grande como a de Eva.

Eva seguiu para casa. Estava perdida em pensamentos. Apertava a estrela no peito enquanto maquinava como convencer os pais de que Alma merecia uma estrela igual a dela. Eva notou que havia um carro preto parado em frente ao portão do jardim. O pai, a mãe e o irmão ainda bebê estavam embarcando no carro. Eva correu com todas as suas forças mas não o suficiente para chegar antes do ronco do motor dar a partida. Eva atravessou o portão e entrou. A casa estava vazia. Pensou imediatamente que deveria ter acontecido algo com o irmãozinho e os pais tiveram que levá-lo com urgência ao hospital. Olhou-se no espelho do hall e decidiu que não tiraria o sobretudo. Estava frio. O tempo passou e chegou a noite. Nada dos pais voltarem. Eva nunca ficara sozinha em casa. Neste momento escutou o portão abrir-se e correu para a janela da sala. Os pais finalmente deviam estar de volta.

Eva estava enganada. Um frio súbito correu-lhe a espinha. Pelo portão entrava um grupo de homens com capotes pretos e armas na mão. Deviam ser ladrões. Eva tinha que pensar rápido. Tocou novamente na estrela. Lembrou-se do que o pai dissera. A estrela era o escudo de um rei, nada lhe aconteceria enquanto a usasse. Eva correu para seu quarto. Ela sabia exatamente o que tinha de fazer. Havia no quarto de Eva uma porta camuflada na parede. Um dia fora um armário. O pai de Eva havia transformado o armário num esconderijo secreto. Ele fizera Eva prometer que jamais contaria a ninguém, nem a sua própria sombra, sobre aquela porta.

Agora era o momento de usá-la. Eva tateou a parede no escuro até encontrar a rachadura na madeira. Fez uma leve pressão, a porta fez um clique e cedeu. As cortinas do quarto estavam abertas e deixavam entrar a luz da noite. Eva só teve tempo de dar uma rápida olhada no cubículo antes de fechar-se por dentro. Encolheu-se no fundo e prendeu a respiração quando ouviu passos se aproximarem do quarto, o interruptor ser acionado e um filete de claridade atravessar por debaixo da porta camuflada.

Eva só conseguiu voltar a respirar com tranquilidade quando se viu cercada de breu. O escuro, ao contrário de até pouco tempo atrás, não provocava medo. Naquele momento especificamente trazia segurança e alegria. Afinal, significava que os ladrões haviam partido. Mesmo assim, ela não teve coragem de sair do cubículo. Esperaria o retorno dos pais. O cubículo era muito frio e Eva sentiu alívio por estar duplamente protegida, pelo casacão e pela estrela. Estava cansada demais para ouvir os apelos do estômago que parecia um velho leão rugindo. Encolheu-se sobre o próprio tronco e acabou adormecendo.

Eva não soube dizer a si mesma por quanto tempo dormira. O breu continuava e ela custou um pouco a perceber onde estava. Mas o peso na cabeça era maior do que a força para se erguer e deixar o esconderijo. As gotas escorriam da face embora ela estivesse tremendo de frio. Levou os dedos à testa e, em seguida, ao pescoço, como a mãe costumava fazer. Não havia dúvida. Ela estava com febre. E com fome. Mas agora o peso das pálpebras era ainda maior do que o desconforto provocado pelo ronco da barriga. Eva cerrou os olhos e sonhou muito, até com a sopa de beterrabas que tanto detestava. No sonho era o prato mais desejado do mundo. Chegava a lamber os lábios só de olhar o roxo fumegante na concha que a mãe içava da sopeira. Iria devorar dois pratos. O pai era o primeiro a ser servido, simplesmente venerava sopa de beterrabas. Ele teria muito orgulho de Eva, pois finalmente ela provaria a sopa de beterrabas que era a melhor coisa do mundo. O pai era a pessoa que mais sabia das coisas. Quando a mãe despejou a concha, Eva inspirou fundo e agarrou com força a colher. Acordou no momento em que mergulhava o metal no prato. A mão estava agarrada à estrela costurada no sobretudo. A estrela era macia e quente como os dedos de sua mãe. Fechou os olhos novamente e sentiu o estômago aquecer.