DO MURO À COVID, A RESILIÊNCIA DA AUFBAU

Luciana Villas-Boas

Você conseguiria imaginar uma editora financiada por fundos públicos, digamos, a Edusp, subitamente tendo que, para sobreviver, começar a competir com Companhia das Letras, Intrínseca, Globo, Todavia, Autêntica e tantas outras grandes do mercado? Ou uma editora cubana tendo que encarar a concorrência com uma Planeta ou Penguin-Random House em territórios de língua espanhola? Foi com um desafio desse tipo que a história presenteou a linda Aufbau, fundada em Berlim Oriental, em 1945. Erguida dos destroços da II Guerra Mundial, passando pelo regime comunista, a crise do sistema, a queda do Muro de Berlim, a adaptação à intensa concorrência capitalista na pujante indústria editorial alemã e por várias mudanças societárias, a editora certamente conta com cultura empresarial e perspectiva temporal que dão lugar a uma serenidade diferenciada na hora de combater as consequências da Covid-19 em seu negócio. Até agora Aufbau vem vencendo.

Conversa com (A)Gente sobre a incrível trajetória empresarial da Aufbau e o negócio do livro na Alemanha, Inka Ihmels, diretora de direitos internacionais. “A adaptação é a chave para a sobrevivência”, diz ela, que estudou Publishing e Editoração em Mainz (cidade onde Gutenberg inventou a impressão de tipos), atuou numa pequena editora de Frankfurt onde fazia de tudo no processo de criação do livro, trabalhou na poderosa Taschen, em Colônia, e há 11 anos batalha pela tradução dos belos títulos da Aufbau no mundo todo. Inka relata casos interessantes da busca da editora por novos leitores por meio do desenvolvimento de linhas mais populares, que alcançam vendas na ordem das centenas de milhares de exemplares, sem com isso perder o diálogo com os amantes fiéis de sua refinada ficção literária e de seus densos ensaios históricos, políticos e filosóficos.

VB&M: Aufbau enfrentou muitos períodos turbulentos desde seu início há 75 anos: inauguração sob um regime comunista, crises, a queda do Muro de Berlim, adaptação a um mercado editorial capitalista e altamente competitivo, mudanças de propriedade da empresa _ desafios indescritíveis que foram superados. Você diria que a história da Aufbau e a perspectiva do passado contribuíram para a serenidade na editora durante a pandemia que devastou mercados e sociedades no mundo inteiro?

II: Sim, a história da Aufbau ensinou que a adaptação às mudanças é a chave para a sobrevivência. Foi o que fizemos quando o Muro de Berlim veio abaixo, ou quando o novo diretor deixou a empresa de repente. Na adaptação ao ambiente de trabalho imposto pela pandemia, acredito que a editora se beneficiou de dois fatores. Visto que a Aufbau é uma empresa média familiar com 35 funcionários, fica sempre mais fácil encontrar soluções rápidas e eficazes, diferentemente das gigantes do mercado. Ademais, todos da Aufbau se esforçaram para manter a continuidade dos processos, desde o gerente do escritório até os diretores editoriais, apesar dos diferentes estágios de lockdown e dificuldades técnicas, entre outros desafios.

VB&M: Quais medidas adotadas pela editora para enfrentar a Covid-19 que permanecerão pelos próximos anos?

II: A necessidade de trabalhar de casa agilizou os processos de digitalização em diversas áreas do trabalho. Esses novos processos se provaram mais eficientes e até mais ecológicos (com menos papéis, envelopes e selos). Certamente não voltaremos a muitos dos hábitos antigos, que envolviam planilhas impressas, entre outras rotinas.Vamos continuar trabalhando com o Teams (ou qualquer outra plataforma) para reuniões, videochamadas, conversas _ embora eu ainda esteja ansiosa para o momento em que poderemos trocar ideias pessoalmente no escritório e encontrar colegas do mundo editorial em cafés e feiras literárias.

VB&M: Você notou mudanças no gosto literário do público durante a quarentena no ano passado? Quais títulos da Aufbau tiveram mais sucesso no mercado alemão?

II: Sim, felizmente, para a Aufbau, 2020 até que não foi um ano ruim. Mas, assim que o primeiro lockdown começou na primavera (no Hemisfério Norte – NT), notou-se claramente uma procura do público por leituras mais leves. Ficção comercial, sagas familiares, narrativas históricas envolventes e oníricas. Esses livros sempre tiveram bom desempenho no formato digital _ seja e-book ou audiolivro. Então, a guinada digital nos beneficiou muito. Foi bem mais difícil para nossos autores mais literários e para a não-ficção séria. Na Alemanha, leituras públicas nos festivais e nas livrarias são muito importantes para promover esses autores e esses livros. São também fontes significativas de renda para os escritores. Além disso, muitos jornais reduziram o espaço para resenhas literárias nos cadernos de cultura. Portanto, ficou muito difícil promover e vender esses títulos _ o que é péssimo para a Aufbau, mas ainda pior para os autores.

VB&M: E quanto à sua área específica, o mercado internacional? O que mudou para você nas vendas de direitos de tradução? Quais são os livros que fazem mais sucesso com os editores estrangeiros?

II: Primeiramente: eu sinto muita, muita falta de encontrar pessoalmente os colegas do meio editorial. Mas, de fato, o desenvolvimento das vendas de direitos internacionais espelha o desenvolvimento do mercado alemão. Nossa ficção comercial continua vendendo bem mundo afora. Também é uma vantagem poder agendar uma videochamada e conversar sem depender da programação das feiras ou de orçamentos para viagens.

VB&M: A Aufbau foi uma editora altamente literária em seu DNA original, mas na Alemanha unificada teve de desenvolver novas cepas (para usar o vocabulário genético imposto pelo coronavírus). Esse é o desafio mais difícil para uma editora: criar novas linhas que parecerão estranhas a seus leais leitores tradicionais. Aufbau, porém, foi muito bem sucedida no processo, pois, ultimamente, tem aparecido com frequência no top 10 das listas de mais vendidos. Como a editora conseguiu manter seus leitores tradicionais ao mesmo tempo em que passou a oferecer novos tipos de literatura?

II: A chave para manter a linha tradicional e atrair novos campos de negócios é o desenvolvimento de diferentes selos. Cada um deles com seu próprio conceito de marketing, estratégia de mídias sociais e um catálogo diferente para os livreiros. Sob o selo da Aufbau, nosso carro-chefe, continuamos publicando literatura ambiciosa, clássicos modernos e não-ficção séria. O selo Blumenbar é voltado para leitores mais jovens interessados numa literatura mais ousada e urbana, além da não-ficção que reflete a cultura pop. ATB é nosso selo de livros de bolso _ que no momento tem sido nossa principal fonte de best-sellers. Após vários anos de tentativa e erro, a grande descoberta para esse selo se deu quando percebemos que os livreiros não apoiavam nenhum tipo de ficção comercial da Aufbau. Então paramos de tentar seguir a moda e resolvemos nos concentrar na ficção comercial com uma qualidade diferenciada, com um quê especial de interesse (no jargão editorial, o termo usado internacionalmente para esse gênero é “upmarket” – NT). Nós cuidamos atentamente da linguagem e da veracidade dos fatos históricos nos livros que publicamos.

VB&M: Conte-nos sobre a criação e o desenvolvimento da coleção MULHERES CORAJOSAS ENTRE A ARTE E O AMOR, romances biográficos de enorme sucesso na Alemanha e em outros países, que está se tornando conhecida no Brasil graças ao selo Tordesilhas, da Editora Alaúde, responsável pela publicação de MADEMOISELLE CHANEL E O CHEIRO DO AMOR, de Michelle Marly, e FRIDA KAHLO E AS CORES DA VIDA, de Caroline Bernard (este segundo, lançado originalmente em parceria com a TAG Livros). Percebemos também que um grande número de editoras alemãs passou a desenvolver coleções femininas semelhantes.

II: O desenvolvimento da nossa série best-seller é uma das melhores histórias de sucesso da ATB. Sua origem está em alguns livros que havíamos publicado, com ambientação em Paris, sobre as musas de grandes artistas homens. Esses livros se saíram muito bem, mas começamos a nos perguntar se não seria mais importante e interessante focar em mulheres ativas, criativas, que ousaram ir além dos limites que a sociedade lhes impôs. Daí surgiu a coleção MULHERES CORAJOSAS ENTRE A ARTE E O AMOR. Os livros dessa série ficcionalizam as vidas de mulheres extraordinárias, baseando-se em pesquisas extensas, rigorosas e detalhadas. Portanto, aprendemos algo sobre essas mulheres interessantes e a época em que elas viveram, mas, mais importante, nos envolvemos em narrativas emocionantes, vívidas e às vezes trágicas sobre suas vidas.

VB&M: Considerando que agora já são muitos os títulos nessa coleção, é possível distinguir quais mulheres atraem quais leitores (em relação a direitos de tradução em diferentes territórios)? Surpreendeu-a que a primeira oferta pelos direitos do romance sobre Simone de Beauvoir – A MULHER DE MONTPARNASSE, mais um de Caroline Bernard – fosse do Brasil?

II: MADEMOISELLE COCO, o romance da Chanel, vence na coleção com 20 contratos de tradução, já FRIDA KAHLO é a nossa campeã em língua alemã, com 275 mil exemplares vendidos na Alemanha, Áustria e Suíça. O mais importante eixo de leitura da série está na Europa; os territórios mais difíceis de alcançar são os asiáticos e os de língua inglesa. Estamos muito contentes que a primeira venda de SIMONE DE BEAUVOIR tenha vindo do Brasil _ queremos mais surpresas boas assim, por favor.