DESCOBRINDO SIGRID NUNEZ

Anna Luiza Cardoso

O nome de Sigrid Nunez estourou no mundo com o romance O amigo, publicado nos EUA pela Riverhead em 2018 e aqui no Brasil pela Instante em meados do ano passado. O amigo venceu o prestigioso National Book Award no ano de sua publicação original, foi vendido para 24 países e jogou luz sobre a autora, dona de uma vasta obra de quase dez títulos até então desconhecida além de um círculo limitado de leitores e acadêmicos de seu país natal, os EUA. Alçada ao cânone da literatura norte americana contemporânea, ela lança em setembro próximo um novo romance, What are you going through (Pelo que você está passando, em tradução livre), também pela Riverhead. O livro, que foi minha primeira leitura desta quarentena, dialoga com O amigo na gama de temas que aborda e consolida a voz de Sigrid como uma das mais autorais e interessantes de sua geração.

what are you going through

Meu primeiro contato com sua obra foi através de O amigo, que representamos para o Brasil em nome da agência norte americana Brandt & Hochman. Trata-se de um romance impecável sobre a relação entre uma nova-iorquina de meia idade e um dogue alemão herdado de um grande amigo e mentor que comete suicídio. O luto que eles compartilham e a relação que se constrói a partir dessa experiência é dos mais belos retratos que já li da ligação humano-canina _ e diria que também humano-felina.

Como pano de fundo e segundo grande tema da narrativa, o universo da escrita e do fazer literário. A narradora é professora de escrita criativa em NY e foi aluna daquele que depois se tornou seu grande amigo. Através de sua relação ela explora o ambiente universitário no âmbito das faculdades de Letras e Literatura e descreve com rara argúcia o conflito de gerações nas salas de aula de hoje em dia. Suas considerações sobre o universo das letras e as brumas que o envolvem se alternam com reflexões sobre a existência e com a própria trama, compondo um romance que ora parece ensaio, ora memória, e que na verdade é a escrita ficcional polida à máxima pureza, sem formas definidas ou amarras aos conceitos formais de enredo e narrativa. Um modo que vim a entender ser muito Sigrid Nunez de escrever.

Quando li O amigo, apaixonei-me e fui pesquisar a obra da autora. Descobri que ela trabalhou como assistente de Susan Sontag, namorou seu filho, David, e viveu com eles por um tempo na famosa cobertura do London Terrace, em NY. Essa vivência é deliciosamente narrada em Sempre Susan, memórias consideradas pela NYT Magazinethe masterpiece of the ‘I knew Susan’ minigenre” e uma das mais deliciosas leituras que fiz no ano passado. Foi curioso descobrir também a existência de um mini gênero memorialístico denominado “I knew Susan”, que achei absolutamente genial. Susan Sontag é, para mim, não só a maior ensaísta do século 20, como também uma das personalidades intelectuais mais emblemáticas e interessantes da modernidade, e a intimidade compartilhada no livro despertou em mim uma espécie de laço afetivo de memória nostálgica com Sigrid Nunez.

What are you going through, o novo romance, consolidou minha adesão à sua obra. A narrativa é um caleidoscópio de observações sobre a existência a partir do olhar de uma mulher contemporânea de meia idade e os encontros que ela faz. Nas palavras da bela resenha publicada hoje pela Kirkus Review, mais do que um enredo, tem-se ali “circunstâncias para inspirar o pensamento”.

Ao mesmo tempo em que narra, a escrita fluida de Sigrid Nunez divaga e reflete sobre vida, morte, escrita e as relações, temas também centrais em O amigo, mas agora abordados a partir da relação da narradora com mulheres com quem em diferentes graus se relaciona. Às vezes, só as observa. A narrativa se desenvolve a partir de uma visita da protagonista a uma amiga com câncer terminal, mas assim como no romance anterior, as reflexões e memórias da narradora se imiscuem ao enredo principal, que novamente divide o protagonismo da narrativa com os outros múltiplos e paralelos.

Muito mais do que narrativas sobre a perda de um amigo querido, o que Sigrid Nunez constrói em O amigo e What are you going through são perspectivas sobre o ir e vir da vida em seus pequenos detalhes, conscientes e inconscientes. Isso com uma escrita precisa e muito prazerosa que extrapola todos os limites de forma e enredo e nos envolve no universo de uma autora arguta em suas observações e madura no domínio com que exerce seu ofício.

Nos últimos tempos, ela conquistou lugar cativo entre as sugestões de leitura que vivo dando por aí. A primorosa edição brasileira de O amigo é a mais recomendada, por razões óbvias, e sua recepção é unânime. Outro dia vi que estava entre os livros mais vendidos do site da Instante durante a quarentena, fiquei feliz. Paulatinamente, bem do jeito dela, Sigrid Nunez chega ao Brasil e vai conquistando aqui também o posto de referência de boa literatura.