CONTRA OS BUROCRATAS DA LÍNGUA

Experiente editora com longa passagem pela Companhia das Letras, onde comandou coleções de obras clássicas como a de José J. Veiga, Vanessa Ferrari atualmente coordena um projeto de clubes de leitura com remição para penas de presidiários e penitenciários em doze unidades prisionais do Estado de São Paulo. Infelizmente, o projeto teve que ser interrompido durante a pandemia de Covid-19. Aqui ela analisa as consequências e avalia caminhos alternativos para o projeto. Esta ENTREVISTA de Vanessa poderia também figurar no espaço de DICA PARA O AUTOR do blog da VB&M. Ela dá muitos toques nos escritores e aspirantes a autores. Comenta mas também explica a relutância das editoras em publicar literatura brasileira e os problemas abissais que a sociedade enfrenta para formar leitores. Nesse momento é que o depoimento de Vanessa Ferrari torna-se mais precioso e original: “Precisamos mudar o entendimento do que é um bom leitor. De nada adianta fazer propaganda dizendo que ler é maravilhoso, mágico, que alimenta a alma e todas essas frases-clichê que só fazem o não-leitor achar que tem uma falha de caráter” – diz ela. Vanessa Ferrari defende o apoio total aos clubes de leitura, principais e melhores formadores de leitores que há. Ao mesmo tempo, adverte que, quanto mais livros medíocres forem publicados, mais difícil será atrair leitores principalmente para a literatura brasileira. “(O escritor) precisa livrar-se dos dogmas literários e aprender que rigor não é ser um burocrata da língua. Quando isso acontece, o entendimento da escrita se amplia muito, assim como as chances de escrever um bom livro.”

VB&M: Você foi editora da Companhia das Letras durante muito tempo cuidando de importantes obras da literatura brasileira. Como vê a resistência das editoras a publicar autores nacionais e o que nós, leitores, deixamos de ganhar com isso?

VF: As editoras fazem a conta e ela não bate. A literatura brasileira vende pouco e não paga a edição. Com empenho da editora e se for um bom autor, os benefícios virão a médio e longo prazo. Por outro lado, se cada publicação é uma aposta, depositamos muitas fichas em livros estrangeiros, nem sempre bons, que também não vendem. Pensando em um equilíbrio, as editoras podem selecionar um, dois ou três escritores brasileiros e balancear as contas com os seus best-sellers, por exemplo. Dito de outro modo, a não ser que a editora seja segmentada, não faz sentido ela não ter um olhar para a literatura nacional. E é nessa seara que as pequenas editoras se destacam. Elas fazem uma tiragem modesta, com uma edição bem-cuidada, sem a pressa de uma linha de produção, com uma capa bonita e um projeto gráfico pensado para aquele livro.

Olhando para o outro lado do balcão, um puxão de orelha nos aspirantes a escritores. Muitas vezes, eles dão mais valor a ter seu livro publicado e menos a trabalhar no texto, buscar referências, exercer o ofício da escrita propriamente dito. No limite, muitos escritores sequer são leitores. Nessa hora, cabe ao editor avaliar se o projeto é sério ou apenas a realização de um sonho pontual.

VB&M: Desde 2010, você coordena o projeto da Companhia das Letras de clubes de leitura em unidades prisionais no Estado de São Paulo. Como tem sido essa experiência durante a pandemia? Os clubes foram suspensos? Qual a maior perda decorrente dessa suspensão?

VF: Os clubes foram suspensos pela primeira vez em dez anos e foi uma decisão compreensível. Os funcionários do setor de educação, entre eles, os mediadores dos nossos clubes de leitura, ainda não receberam sinal verde para entrar nas unidades. Conter o vírus é uma tarefa difícil, especialmente na prisão. Como adotar o mesmo protocolo de segurança da OMS para quem vive nos pavilhões? Na rota contrária, quem está fora pode levar a Covid-19 para a população carcerária.

Neste momento, estamos pensando em alternativas para não deixar os participantes tanto tempo sem leitura. Essa é a maior perda, porque os benefícios dos clubes são imensos, vão muito além da remição de pena. Eles impulsionam a reflexão, os projetos para o futuro, a autocrítica e a empatia pelas questões alheias, além, é claro, de formar leitores.

VB&M: Quais os maiores desafios para se formar leitores no Brasil? 

VF: Precisamos mudar o entendimento do que é um bom leitor. De nada adianta fazer propaganda dizendo que ler é maravilhoso, mágico, que alimenta a alma e todas essas frases-clichê que só fazem o não-leitor achar que tem uma falha de caráter. A vida de quem lê é adorar um conto, detestar outro, ler bestsellers, ser indiferente a um romance, se apaixonar por algum personagem, não entender nada do que o autor disse, desistir do livro ou achar determinado autor uma chatice. Ele também tem o direito de morrer de sono e de tédio se o assunto não lhe interessa. E um ponto crucial nessa trajetória: a maioridade chega quando ele se sente tranquilo por não gostar de um cânone literário. No meio de tudo isso, há aqueles momentos de epifania, quando a pessoa é capturada por uma história. Por isso é que os clubes de leitura são tão potentes. É o lugar perfeito para o leitor ser ele mesmo, longe de julgamentos. Dito de outro modo, temos que parar de dizer o quanto a literatura é legal e começar a mostrar como é a vida de leitor, e isso não se faz com provas, teorias literárias, livros obrigatórios ou com o ensino da gramática. Tudo isso importa, mas não forma leitores. Daí eu volto aos clubes: não conheço outro projeto de formação mais eficiente e sedutor do que esse. E sedução aqui é a palavra-chave. Se queremos um país de leitores, temos que apostar em clubes de leitura. Em todas as escolas do Brasil, em todos os anos de formação, nos quatro cantos do território nacional — nenhuma deve ficar de fora. Se a leitura for mensal, chegaremos no patamar de nove livros por ano, que é mais que o dobro da média nacional, pareando com as melhores médias mundiais. Em apenas um ano já é possível ver resultados. Se houver vontade do Estado, apoio da sociedade e das grandes empresas privadas, é totalmente possível virar o jogo. Precisamos de uma figura política — isso é o mais difícil — que tenha a ambição de entrar para os livros de história pela porta da frente, como aquele sujeito que revolucionou a formação do leitor no Brasil.

VB&M: Qual a sua visão de nossa produção literária contemporânea? Há algum elemento comum que você perceba nas obras e originais que lê e avalia e que considere pertinente compartilhar?

VF: Aconteceu um episódio recentemente que vale a pena contar. Eu dou cursos e faço clubes de leitura no Lugar de Ler. Semanas atrás, me debrucei sobre a curadoria do próximo ciclo e, nas minhas escolhas, que são totalmente afetivas, só de livros que eu gostei de ter lido, apareceram várias autoras brasileiras. Não foi premeditado, no sentido de fazer uma seleta de escritoras. Essa é uma ótima notícia porque é assim que deve ser idealmente. Nos últimos anos, houve um esforço enorme, em várias frentes, de pessoas que divulgam, prestigiam, fazem eventos com autoras brasileiras, como o Leia Mulheres, por exemplo. Meu ponto é que, se a obra é ótima, não importa o gênero do autor. Mas, se há homens e mulheres escrevendo ótimos livros e, por vários motivos, o que chega ao leitor com muito mais ênfase é a produção masculina, o gênero importa, sim.

E sobre os originais: se falhamos na formação do leitor, o escritor iniciante tem um trabalho árduo pela frente. Ele deve repensar quase tudo o que aprendeu sobre o que é um texto literário, uma ideia que ainda se vincula ingenuamente às regras normativas — em que basta não deslizar na gramática para resolver a questão —, e, ao mesmo tempo, abrir os sentidos para as nuances, variações e entrelinhas do texto. Precisa livrar-se dos dogmas literários e aprender que rigor não é ser um burocrata da língua. Quando isso acontece, o entendimento da escrita se amplia muito, assim como as chances de escrever um bom livro.