BENDITAS FLORES MALDITAS

Em Narrativas e Depoimentos, dois trechos do estupendo romance inédito A MALDIÇÃO DAS FLORES, da escritora, jornalista e roteirista Angélica Lopes, cuja representação literária VB&M anuncia com orgulho. Com mais de 20 anos de experiência na área de ficção, Angélica é autora de vasta obra, com livros na Rocco, Leya, Zit, Escrita Fina e Lê, e atua como roteirista em novelas, séries e programas de humor da rede Globo. Em A MALDIÇÃO DAS FLORES, a narrativa se divide entre o interior de Pernambuco em 1918 e o Rio de Janeiro nos dias atuais e acompanha uma linhagem de mulheres conhecidas como “as Flores”, sobre as quais paira a maldição: todos os homens que cruzam seus caminhos morrem prematuramente.

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Minha mãe fora ensinada por sua mãe, que, por sua vez, também fora ensinada por sua mãe, que os homens da nossa vida estariam sempre de passagem, visitas apressadas que já chegam avisando que não vão se demorar. No máximo, um café, obrigado, já pegando o chapéu para sair.

Casavam-se conosco, nasciam de nossos ventres mas, com o passar de alguns anos, simplesmente partiam, hóspedes preocupados com o compromisso importante que teriam em seguida. Morriam de morte morrida, de morte matada, por desavença ou febre alta. Morriam novos, alguns na meia idade, mas jamais víamos seus rostos enrugados e seus cabelos embranquecidos pelo tempo.

Como boas anfitriãs de suas existências, sabíamos ser nosso dever deixá-los o mais à vontade possível durante sua passagem por esse mundo e fazer as despedidas mais afetuosas quando a hora derradeira chegasse. Por saber que o encontro seria breve, uma saudade já começava a nos atravessar o peito no momento em que os conhecíamos. 

Quando minha mãe beijou meu pai pela primeira vez durante uma Festa de Santa Águeda, o encanto surgiu acompanhado de uma angústia por saber que teria um beijo a menos do total não muito extenso de beijos que lhe era destinado. Precisava aproveitá-los intensamente.

Com a mesma naturalidade com que lidávamos com suas chegadas, no momento em que colocávamos uma rosa branca sobre suas lápides, tratávamos de arrumar a casa para a chegada da próxima visita. Logo se iniciaria um novo ciclo, que terminaria numa partida tão prematura quanto as anteriores. Acostumadas àquele modo de viver tão já conhecido, não sofríamos nem questionávamos o porquê da nossa sina,  batizada pelo povo como “a maldição das Flores”.

Fosse por compaixão ou maledicência, era comum que os moradores de Bom Retiro nos lançassem um olhar de pesar quando cruzavam conosco na rua. A boa gente da terra se condoía por não haver quem cuidasse de nós: achando que, por sermos mulheres, precisaríamos de mais do que nós mesmas para sobreviver. Enquanto que os mais desconfiados tinham a convicção de que algum pecado muito grave devíamos ter cometido para merecer o castigo. “Não se deixem enganar pelas Flores. Alguma elas aprontaram”, era o que se comentava sobre nós, nem sempre pelas nossas costas.

*** 

Em pé na entrada no pequeno cômodo, Eugênia recebeu a notícia que lhe escurecera os olhos desde então. O Coronel pedira sua mão em casamento e o pai a concedera de bom grado.

− Um casamento melhor do que esse você não arranja por aqui – a mãe tentou lhe convencer horas mais tarde. – Você tirou a sorte grande. Ainda há de se arrepender por essas lágrimas.

Bem apessoado, o Coronel mal havia passado dos 30 e daria à Eugênia todo o conforto na Fazenda Caviúna.

− E ainda tem as crianças – a mãe insistia. – Órfãs, pobrezinhas!

Eugênia havia de  ter compaixão por aqueles anjinhos que precisavam de quem que cuidasse deles, tanto quanto Eugênia precisava de uma ocupação.

Em menos de um ano, a mãe estava certa de que Eugênia mal se daria conta de que aqueles meninos não eram seus filhos de sangue e, quem sabe, outra criança não estaria a caminho?

− Que benção seria. Meus netos, herdeiros da Caviúna.

Mas aquela não era a vida que Eugênia imaginara para si. Os filhos do Coronel haviam sofrido um baque com a morte da mãe, mas estavam corados e riam alegres quando o balanço ganhava altura. Não precisavam dela, assim como ela não precisava da Fazenda. Eugênia gostava de morar na cidade, de exibir seus vestidos novos na missa, de ver as gentes nas ruas.

Ainda de pé na entrada da saleta, ouvindo a voz do pai lhe comunicando sobre a decisão que mudaria sua vida, Eugênia sentiu o ar faltar. À sua frente, o Coronel Aristeu permanecia num silêncio respeitoso e não se mostrava particularmente interessado na futura noiva. Fora até ali em busca da peça que faltava na engrenagem de sua vida. O motor que, até poucos meses antes, garantia que tudo estaria funcionando em sua casa – comida na mesa, roupa engomada, família sentada na primeira fileira na missa de domingo – havia se quebrado.

Naquela tarde, o Coronel talvez avaliasse se a moça se encaixaria com perfeição no vazio deixado pela falecida esposa, que saíra da vida antes do tempo previsto, causando tanta desordem. Se fizesse uma boa escolha, dali a alguns anos, talvez ele nem se desse conta de que a segunda esposa era apenas uma peça substituta, e não a original.

À Eugênia não fora perguntado nada. Não era do interesse dos homens presentes, e nem da mãe – que àquela hora rezava em seu quarto pedindo a Deus, nosso Senhor, que tudo corresse como planejado −, se Eugênia estava de acordo com o destino acertado à sua revelia. Se fosse consultada, Eugênia diria não. Não queria ser esposa do Coronel, tampouco mãe daquelas duas crianças. Havia sido criada com mimos de filha única. Não lhe foram dados castigos, nem lhe foram ensinadas tarefas domésticas, como cuidar da horta, estender as roupas para quarar ao sol, debulhar o milho, separando os melhores grãos para o fubá e deixando os cacos para as galinhas. Eugênia era uma moça de vontades e ser a nova esposa do Coronel Aristeu Medeiros Galvão não era uma delas.