O escritor e advogado Ronaldo Wrobel, autor de TRADUZINDO HANNAH e O ROMANCE INACABADO DE SOFIA STERN (Record), compartilha sua Frase Sublinhada em “O fim do homem soviético” (Companhia das Letras, 2016), da vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch, traduzido do russo por Lucas Simone. A autora coletou memórias de quem viu a União Soviética nascer, vencer a Alemanha e duelar com o Ocidente na Guerra Fria, para depois acompanhar seu declínio e a extinção, em 1991. O trecho selecionado faz parte do depoimento da filha de um soldado da Segunda Guerra. Para Wrobel, que nutre um fascínio por histórias das pessoas comuns que viveram durante guerras, o trauma é semelhante ao que enfrentamos desde 2020: “A pandemia de Covid-19 não deixa de ser uma guerra mundial que nos pegou de surpresa. Ninguém estava preparado ou sairá dessa calamidade sem transformações que, talvez, nos aproximem um pouco daquelas pessoas que, nas primeiras décadas do século passado, faziam piqueniques no bosque ou se divertiam num cabaré parisiense às vésperas de uma guinada radical em seus destinos.”
“Ele lutou na guerra menos de um ano e meio e foi feito prisioneiro. Como ele foi feito prisioneiro? Eles estavam avançando por um lago congelado, e a artilharia do inimigo atirou contra o gelo. Foram poucos os que conseguiram nadar até a margem, e os que conseguiram já não tinham mais forças, nem armas. Estavam seminus. Os finlandeses então estenderam a mão a eles. Salvaram. Uns pegaram essa mão, já outros… Foram muitos os que não aceitaram ajuda do inimigo. Tinham sido ensinados assim. Mas o meu pai segurou a mão de alguém, que o arrastou para fora. Eu me lembro bem da surpresa do meu pai: ‘Eles me deram schnapps para eu me aquecer. Deram roupas secas. Riram e bateram no meu ombro: ‘Está vivo, Ivan!”. Meu pai nunca tinha visto antes os inimigos de perto. Não entendia por que eles estavam tão contentes…
‘Em 1940 terminou a campanha na Finlândia… Os prisioneiros de guerra soviéticos foram trocados por finlandeses, que estavam sob a nossa custódia. Foram ao encontro uns dos outros em colunas. Os finlandeses, quando chegaram do lado deles, começaram a se abraçar, a apertar as mãos… Os nossos não foram recebidos assim, foram recebidos como inimigos. ‘Irmãos! Meus queridos!’ [diziam os prisioneiros russos], e correndo na direção de seus companheiros. ‘Alto! Um passo para fora da formação e nós atiraremos!’ A coluna foi cercada por soldados com cães policiais e eles foram levados para barracões preparados especialmente para aquilo. Ao redor dos barracões havia arame farpado. Começaram os interrogatórios… ‘Como você foi feito prisioneiro?’, perguntou o investigador ao meu pai. ‘Fui tirado de um lago finlandês’. ‘Você é um traidor! Salvou a sua própria pele, não a pele da pátria’. Meu pai também se sentia culpado. Tinham sido ensinados assim… Não houve nenhum julgamento. Todos foram levados para a praça de armas, onde leram diante da formação a ordem: seis anos no campo de trabalhos por traição à pátria. E foram mandados para Vorkutá. Lá eles foram colocados na construção de uma estrada de ferro, no solo congelado. Meu Deus! Isso em 1941… Os alemães já estavam nos arredores de Moscou… Não contaram para eles que a guerra tinha começado, afinal, eles eram inimigos, ficariam contentes. A Bielorrússia inteira já estava sob o domínio alemão. Smolensk tinha sido tomada. Quando ficaram sabendo disso, todos imediatamente quiseram ir para o front, escreveram cartas para a chefia do campo… Para Stálin… E receberam a resposta: vocês são uns canalhas, eles disseram, vão trabalhar pela vitória na retaguarda, não precisamos de traidores no front. E eles… papai… Eu ouvi isso do meu pai… Todos eles choraram.”