AS CORES DE GOETHE

O conto do escritor, artista plástico e editor Alexandre Staut, originalmente lançado pela Storytel na audiossérie “Vai ficar tudo bem”, fecha a semana do blog VB&M. Um privilégio ler – não só ouvir —  “A teoria das cores” em que dois amigos conversam sobre a obra homônima de Goethe, poderosa influência sobre os artistas do Romantismo por toda a Europa, enquanto um dos personagens pinta um horizonte em seu quadro.

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A teoria das cores
Alexandre Staut

Meu amigo pintor é também um bom contador de histórias. Numa das últimas vezes em que o visitei, ele serviu café e me convidou a sentar no sofá, de frente para a sua galeria. Deu um gole e disse que, nos anos que seguiram a morte de Schiller, em 1805, Goethe adoeceu muitas vezes, ficando recolhido em casa. Ambos moravam na cidade alemã de Weimar, e não se sabe se os constantes problemas de saúde de Goethe foram decorrentes da morte do amigo. Goethe escrevia deitado, sempre com as janelas do aposento abertas.

Meu amigo pintor falou que a inspiração do autor romântico, poeta e político vinha das janelas, entrava no quarto em forma de luz e som, serenidade e fúria. Dessas janelas – não se sabe se voltadas para leste ou oeste, mas o mais provável para oeste – Goethe ouviu as tropas de Napoleão invadirem Weimar, sem ver, no entanto, os soldados em suas fardas tomarem conta da cidade. O escritor ficou atormentado com o acontecimento. Viveu uma fase sem esperança, sem interesse de olhar pelas janelas, por onde antes acompanhava o nascer do sol e o céu estrelado.

Não tardou para que voltasse a escrever. Começou sua autobiografia. Deitado na cama também escreveu o livro Teoria das cores (1810), com descrições dos fenômenos naturais que observava e da mudança das cores do céu refletidas nas paredes de seu quarto, nas quatro estações do ano.

Meu amigo pintor deixou a xícara e se aproximou de sua mesa de tintas. Misturou duas delas – branco e gris de Payne – para criar uma espécie de cinza-azulado, conforme me disse. “Ótimas cores para fazer nuvens.” Depois falou que o fenômeno das cores de Goethe influenciou artistas do movimento romântico por toda a Europa. O pintor inglês Turner teria lido e se impressionado com o livro de Goethe.

Meu amigo despejou um médium para pintura na mistura cinza-azulado, molhou levemente um pincel e começou a fazer um céu mágico numa tela pequena e anteriormente pintada de ocre. Ele tinha a atenção voltada à sua atividade, mas continuou a falar dos artistas românticos. “Turner foi um homem excêntrico e recluso. Não se casou, mas teve duas filhas, Eveline e Georgina, ambas com Sarah Danby, sua governanta.

Depois da morte do pai, Turner se tornou um pessimista. Mas sua arte se intensificou e ele deixou um legado de mais de 500 pinturas a óleo, milhares de aquarelas e 30 mil desenhos e rascunhos. Meu amigo retocava as bordas das nuvens com a cor branca de titânio, criando um jogo de cena, em que as nuvens passaram a parecer realmente nuvens. “Turner deve ter visto e guardado na memória inúmeras paisagens, antes de se trancar para criar suas obras-primas. Acredito também que estudou a Teoria das cores no período de reclusão”, disse.

A paisagem do meu amigo começava a tomar forma. A tela não tinha mais do que 30×30 cm. Um horizonte se formava, embora ele ainda não tivesse esboçado nenhum chão. Perguntei sobre esse chão e ele falou que terra firme, muitas vezes, era uma coisa que não importava. Quis saber se tinha lido a Teoria das cores e ele disse que não tivera a oportunidade. As histórias que me contava haviam sido contadas por um amigo seu. “Fiz um experimento parecido àquele de Goethe. Arrumei um prisma e passei a observar a passagem da luz e sua projeção sobre uma parede branca, em busca do facho com todas as cores do arco-íris. Aí percebi o insight de Goethe. As cores surgiam da interação entre luz e escuridão.” As nuances de cores do horizonte pintadas por meu amigo passaram a ficar mais visíveis. Atrás de nuvens brancas e cinza-azuladas, havia a cor fúcsia, e atrás desta o ocre inicial da tela.

A inspiração vinha de Turner e depois de Goethe. Meu amigo usava camadas finas de tinta, umas sobrepostas às outras. Quando ia pintar uma paisagem, ele falou, fazia espectros e rascunhos – de nuvens, árvores, campos, florestas – e depois cobria a tela com branco de titânio, gris de Payne, gris de pigeon, amarelo Nápoles, terre verte, entre outras cores.

Na aula informal aprendi que o gris de Payne, ou cinza de Payne, é uma cor azul-cinza escura que serve como misturador no lugar do preto, dando um tom azulado e não tão escuro quanto o preto. Quando criada, a cor era uma mistura de azul da Prússia, ocre amarelo e lago vermelho. Hoje é uma mistura de azul ultramarino com outras cores vibrantes. A cor recebeu este nome em homenagem ao inglês William Payne, um contemporâneo de Turner.

Não lembro da finalização da tela. Houve um dia em que meu amigo me visitou, trazendo-a de presente debaixo do braço. A tela está pendurada na sala da minha casa. Desde que anunciaram a importância de uma quarentena, em que um não deve encontrar com o outro, fico admirando-a. É como se um horizonte se abrisse à minha frente. Ao mesmo tempo, penso na teoria das cores e repasso na memória as tantas histórias contadas por meu amigo.