AINDA HÁ DE FICAR TUDO BEM

Em Narrativas, Chris Melo encerra a semana e a publicação de contos lançados originalmente em áudio pela Storytel no projeto “Vai ficar tudo bem”, com o intuito de dar consolo – e deu – às aflições da gente um ano atrás, quando começou a Covid-19. Infelizmente, ainda não ficou tudo bem, muito longe disso, mas valeu ouvir belas histórias de superação e final feliz, que o blog VB&M publicou em texto nos últimos três meses. “É sempre mais escuro antes do fim”, o conto da Chris, narra a rotina de João, um jovem introvertido, e as mudanças pelas quais ele passa durante a pandemia.

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É sempre mais escuro antes do fim.
Chris Melo

Dia 1

O despertar do relógio, o vibrar do celular indicando novas mensagens, notificações das redes sociais e das plataformas de streaming ou, quem sabe, de algum e-mail. É nesse círculo que a sociedade moderna vive. É só assim que muitos sabem viver. Muitos mesmo.

Aqueles dias não tiveram nada de diferente. João acordou e foi automaticamente jogado em sua rotina. Quando se deu conta, já estava no metrô, espremido entre outras pessoas, tentando se anestesiar com a música alta no fone e a fase oitocentos e trinta do jogo da vez. Alguém comentava sobre a crise sem precedente que assolava outro país, mas ele não ouviu. Seguiu de cabeça baixa até chegar à sua estação.

Baldeação. Entra. Sai. Escadas. Mesa do trabalho. Tudo assim, como se o ensaio de todas as manhãs o tivesse transformado em um profissional do caminhar sem perceber, do transitar sonolento e desinteressado. Uma moça choramingava ao telefone, mas ele não viu. Seguiu de cabeça baixa até cruzar o saguão.

Depois de algumas horas trabalhando, recebeu uma mensagem da mãe perguntando se ele lembrava do aniversário do irmão no final de semana seguinte. Não, ele não se lembrava, mas respondeu que sim e que tentaria ir. Aproveitou para mandar um olá no grupo dos amigos, trocou algumas piadas e patifarias até se sentir melhor e voltar ao trabalho.

Almoçou com clientes, disse frases de impacto, riu generosamente e quase não comeu. Apertou mãos desconhecidas com uma firmeza amiga, confiante e gentil. Pediu desculpas quando seu telefone tocou. Era seu pai querendo perguntar se havia visto as últimas notícias, mas ele não atendeu. Seguiu de cabeça baixa até terminar a reunião.

No fim do dia, recebeu parabéns por seu desempenho no trabalho. Dois tapinhas nas costas e um abraço do chefe, um cara asqueroso e desumano que valia menos do que seu terno caro, mas que sorria para seus funcionários e dizia que eram importantes. Parte do jogo.

João pensou em chamar sua colega para sair, comemorar uma possível promoção, mas perdeu a vontade quando viu que havia começado a chover. A cidade ficaria caótica, toda abarrotada e molhada, com aquele cheiro de umidade e perfumes amanhecidos. Não valia a pena. Pegou o trajeto de volta.
Tomou banho. Comeu. Trocou mensagens com os amigos e com os pais. Revirou os olhos com a preocupação deles sobre algo que ninguém tinha certeza, mas já ocupava todos os noticiários da TV. Dormiu entre um episódio e outro da série do momento. Tudo assim, como se o ensaio de todas as noites o tivesse transformado em um profissional do não viver, do apenas seguir.

Dia 2.

No meio do ritual da manhã, encontrou um bilhete e a chave de sua vizinha no chão da sala:

“Desculpe incomodar, mas precisei buscar meu pai no aeroporto bem cedo, pode dar ração para o Tex? Valeu, te devo mais essa.”

Caso João estivesse anotando, sua vizinha teria que lhe pagar uma boa grana. A chave dela já devia conhecer o caminho por baixo da porta de seu apartamento. João devia dar mais comida ao Tex do que sua própria dona. Já tinha dito que sua vida era corrida, mas a garota não parecia perceber que o incomodava e continuava a agir como se eles fossem duas senhoras, moradoras de alguma cidade do interior que trocavam tigelas com bolos e outras delícias feitas em casa. Bem, eu disse que muitos vivem enfiados em suas rotinas tiranas, mas não disse todos. Ainda há quem não ache nada demais conviver com os vizinhos e, quem sabe, trocar alguns favores. Nem tudo está perdido.

O dia foi igual ao anterior e os anteriores a ele. Alguns com mais sucesso, outros com fracassos, mas todos presos na dinâmica confortável de João.

Dia 5.

Chegou à casa de seus pais depois do horário combinado e sem um presente para o irmão, mas prometeu que, assim que tivesse um tempo, compraria alguma coisa. Comeu a comida com gosto de infância, jogou conversa fora e cantou os parabéns. Foi nutrido pelo amor incondicional que sempre sustentou a todos naquele lar. Encheu potes com sobras para levar consigo e embrulhou um pouco daquele afeto também. Sem saber a importância daquele dia, das pessoas e dos encontros, despediu-se com a pressa do até breve.

Dia 8.

Os rumores viraram fatos. A crise de outros países enfim havia cruzado as fronteiras. Devagar ainda, cheia de incertezas. Um vírus estava matando pessoas ao redor do mundo, mas ainda parecia distante. Algo que acontece longe, sempre contado por alguém. Já teve a sensação do mundo ser algo longe demais? Como se a vida particular estivesse à parte de todo o resto? Era o que João e outros milhares sentiam. Como se o noticiário fosse um seriado catastrófico o suficiente para te transtornar, mas não a ponto de parecer real.

Dia 10.

As aulas foram suspensas e o pai da vizinha, internado em estado grave. No trabalho, discute-se a possibilidade de adiantar férias para os funcionários que se enquadram no grupo de maior risco. João sente um leve torpor, como se não fosse capaz de processar tudo de uma vez. Quer acreditar que tudo aquilo é medida preventiva e que logo todos notarão que foi um exagero. “A rotina é imperativa”, pensou. E se sentiu melhor.

Dia 14.

Trabalhar em casa pode ser convidativo, sobretudo, para pessoas introspectivas como João. Nos dois primeiros dias até foi, mas hoje parece estranho acordar e não sair. Surreal demais algo tão simples como cruzar os portões e pegar um ônibus se tornar quase proibido.

O número de mortos dobra todos os dias e o isolamento é indicado para evitar que muitas pessoas precisem de cuidados médicos ao mesmo tempo. Ninguém estava preparado para algo desse tipo. Ninguém está preparado para tomar o remédio da solidão. Muito menos por tempo indeterminado.

Dia 20.

O isolamento traz ausências bobas: o pão quentinho da padaria, o bom dia ao porteiro, a piada do colega de trabalho. Alguém já disse que nenhum homem é uma ilha e João está começando a sentir isso.

Seus pais estão isolados também. Seu irmão anda enlouquecido com tantos trabalhos da faculdade e sua vizinha anda muito quieta.

A vida parece ter parado para esperar uma tempestade passar. Uma tormenta silenciosa e poderosa, capaz de nos distanciar a ponto de não podermos beijar nem nossas mães ou filhos, nem nossos amores.

A internet essencial de repente já não basta. Os livros, as séries e tudo aquilo que sempre foi um escudo confortável perdeu um pouco do sentido.

O isolamento traz ausências grandes: presenciar um sorriso, caminhar ao ar livre, apertar mãos, abraçar. Nenhum homem é uma ilha e foi no isolamento que João se sentiu parte do mundo.

Dia 24.

João está bem. Trabalhando de casa e lutando para se ocupar. Criou uma rotina nova e se adequou, mas e os outros? É nisso que ele pensa a todo instante. Como estão seus pais? De verdade, não nos poucos minutos em que conversam por videoconferência. Como estão as famílias dos que partiram? E os empregos? A saúde? A economia? O pai da vizinha e o cachorro?

Tudo assim, de uma vez. Como se de repente o todo tivesse invadido sua parte. João sabia que não podia fazer muita coisa, mas levantou a cabeça e olhou em volta. Precisou olhar. Enxergou além de seus pés, ouviu além de seus fones de ouvido e preocupou-se com sua cidade, seu país e com a humanidade. Olhou para as pessoas justo quando elas não podiam estar ao seu redor.

Encomendou mantimentos para seus pais e avisou ao irmão para desinfetar tudo antes de manusearem as coisas. Passou um bilhete por debaixo da porta da vizinha, perguntando se estava tudo bem. Viu que o porteiro dormia e lhe mandou uma marmita. Não era muito, mas era algo. Era o que podia fazer.

Dia 30.

Não há previsão de quando o isolamento poderá ser interrompido. O chefe de João fez um acordo de redução de horas com redução de salário, além de tirar alguns benefícios. É péssimo, mas ele não consegue reclamar, sabe que há pessoas em situação muito pior.

Tex, o cachorro da vizinha, está morando com ele. É um bálsamo para os dias tristes, mas o motivo é lamentável: o pai da vizinha faleceu e ela e a mãe estão doentes, internadas. Era para João apenas alimentar o cão, mas os dois estavam sofrendo demais com tanto abandono. Uniram-se na saudade.

A maior pergunta do momento é: até quando? Não se sabe e essa é a angústia. Como na guerra, não há uma data estipulada para o fim, há apenas uma esperança desesperada para que os mocinhos nos salvem. Neste caso, uma vacina para nos livrar dos males do vírus, quem sabe outros pequenos milagres para cuidar das sequelas sociais.

Dia …

Está chovendo e João sente a brisa fresca e úmida que entra pela janela. As árvores balançam com o vento e parecem se alegrar com cada gota.
Um comunicado nacional acabou de informar que o isolamento poderá ser interrompido em poucos dias. Ainda se ouve gritos e palmas vindos de todos os lados. As sacadas estão em festa, ninguém parece se importar com a chuva e há lágrimas nos olhos de João.

É verdade que muita coisa triste aconteceu e momentos difíceis ainda estão por vir, mas esse instante é feliz, pois é a constatação da sobrevivência e sobreviver é o principal instinto de todos os animais. Nós não somos diferentes.

Daqui a pouco, tudo não passará de mais um capítulo na história, contos que netos escutarão de seus avós. Eles contarão como um inimigo invisível foi capaz de nos separar e mudar a trajetória de muitas vidas. Vão contar sobre a saudade de sentir o cheiro do cabelo do filho, tocar as mãozinhas do sobrinho, abraçar a pessoa amada ou se sentar à mesa aos domingos com toda a família. Contarão como a cidade ficou silenciosa, mas nunca vazia, pois não deixamos de existir, de resistir. Ficarão as histórias dos esforços para alegrar as crianças, cuidar dos nossos velhos e ser presente na distância. Restará a força, a fé e, com sorte, um João e outros milhares de seres mais humanos.