Por Alessandro Thomé
Quando eu era pequeno, eu era pequeno. Olhava para o céu e ficava ainda menor. Chorava de verdade e de mentira, porque não piscava para não perder uma estrela cadente que poderia passar naquele ínfimo espaço de tempo em que meus olhos estivessem fechados. O sono vinha, e naqueles dias que me faziam crescer um pouco mais, eu me lamentava pelas tantas estrelas que eu havia perdido durante meu sono. Mas eu sabia que a noite viria e traria mais pontinhos brilhantes. Quando eu era pequeno, eu era pequeno, porque apenas os pequenos têm tempo de ter esperanças.
Cresci um tiquinho em uma soma de tempo de que não me lembro, e cresci uma enormidade naquela tarde pastosa em que o calor diluía o mundo em um vapor bruxuleante que emanava da terra seca. Além das estrelas cadentes da infância, aquela tarde é o primeiro momento em minha vida do qual me lembro com exatidão. O pequeno vestidinho branco que se separava etereamente sob as emanações do calor, o desenho das nuvenzinhas de poeira vermelha a cada passo, as perninhas balançando entre as pernonas de seus pais. E eu lá, sujo, coscorento, repleto das verdades que não me interessavam mais, tudo porque a pequena menina veio e trouxe consigo um outro mundo, uma outra vida. Tudo porque a menina me fez esquecer as estrelas.
Lembro-me de seu primeiro sorriso, que ela escondeu atrás do vestido da mãe. Tenho dúvidas se foi seu sorriso ou a primeira visão de uma menina depois de meus oito anos que deu àquela pequenina a enormidade que ela tomou em meu coração. O fato é que cá estou, sentado em um banco de praça, jurando que se ela não aparecer irei simplesmente me misturar à multidão que passa e tomarei o rumo de onde sempre estou sozinho. Um prédio de apartamentos, um monte de vizinhos e nenhum número na agenda que me faça querer levar o dedo ao telefone. E ela nem deve se lembrar direito de mim. Talvez minha imagem em sua mente ainda esteja envolta pela nuvem de poeira que me cobriu enquanto eu corria atrás do ônibus que a levava embora do sítio naquele tempo em que meus olhares já não se detinham apenas ao seu sorriso. Eu estendia o dedo, apontava uma suposta estrela em particular e escorregava os olhos para as pernas dela. Aquela estrela que ela via era nossa, a nossa estrela. Eu nunca soube exatamente que estrela ela via. No céu de hoje, todas são ela. Para mim, o horizonte noturno na cidade sonolenta está cheio dela, porque as estrelas são o brilho de que me lembro de seus olhos, que vejo em cada ponto de luz e em cada carro que vem e que vai, uma tentativa de trazê-la para mais perto do que aquele brilho que vem do céu escuro.
Quatro anos me levaram dos oito aos doze. Mais vinte e oito me trouxeram aos quarenta. Por que diabos, então, esses minutos de espera me consomem?
Eu vi sua primeira boca vermelha, regozijo de orgulho por estar se tornando mulher na alma, e seu primeiro mergulho no ribeirão sem tirar a roupa, incerteza com vergonha por estar se tornando mulher. Nunca a experimentei além das cercas do sítio, nem me aventurei pela cerca escancarada de nossos hormônios. Mas tínhamos nossa estrela, que eu não sei qual é não por não me importar, mas por não querer piscar, com medo de que a pequenina passasse. E então meus olhos lacrimejavam. Ela via amor, eu, ardor. Eu piscava e sorria, enquanto ela se enchia de ego e felicidade. Até que um dia me descobri um cafajeste, pois permiti que ela me desse um breve beijo — um encosto de lábios ainda com gosto de laranjas — com o qual ela depositava crença em minha paixão. Era paixão pelo não piscar, pelo ardor, pelo riso, mas eu não chorava por ela, e sim para ela. Meus vizinhos fazem isso até hoje. O que pode ser minha maior vergonha é para eles risadas em um bar. Entre eles, um é melhor que o outro, só não sei melhor para quem e em relação a quê. O que há de bom nisso é que nessas histórias que carecem ser contadas está a certeza do dono do bar de que aquela reforma sempre pode sair. Uma mesa nova, pintura, um quadro… Se ela não aparecer, é para lá que eu vou. Se é para estar sozinho, que seja mal acompanhado.
No banco de cimento ao meu lado, uns vinte metros para lá ou para cá — sei lá eu qual a referência —, um velho lê um jornal. Deve ser desgraça, como sempre. Um pouco adiante, sobre o ladrilho da praça que escoa a gente toda, um punhado de pombas se mistura a um punhado de pernas. Desviam-se, as pombas, mas não sentem medo. São apenas pernas envoltas por calças e por pressa. O velho libera um suspiro impaciente, tentando não brigar com o vento que dobra seu jornal e sua leitura; uma menina gira seu cata-vento enquanto sua mãe a arrasta; as folhas das árvores gritam, mas os motores dos carros as desenham como mudas, não devido à sua possível incipiência, mas pela certeza de sua falta de voz.
E então as pombas voam. Entre as pernas a passar, uma rede se estende, atiçada pelo vento. O vestido branco se esparrama por um corpo que se destaca para as pombas e para mim. Elas fogem, eu me levanto. O coração, acostumado a pouco exercício, fruto da ausência de paixões, se cansa em poucos segundos. Penso que ele vai parar, e apenas então me lembro de que não pensei no que dizer naquele momento. É ela.
Entendo o vestido. Hummmm! Entendo, sim. A pequenina não é mais pequena. Traz em si a necessidade dos adornos inerente aos vasos e às molduras. O vestido é uma tentativa de resgate do desejo que um dia apareceu sem que soubéssemos o que era. Agora é nítido, dolorosamente nítido que esse desejo morreu ao nascer. Aqui, onde as estrelas se escondem em postes, onde as dores se escondem em bares e onde a felicidade se esconde em shoppings, a beleza caminha livre. E tem para todos os gostos. Lá no sítio, lá naquele tempo, as coisas não existiam para mim. Lá no meu antigo mundo coscorento, a pequenina era uma novidade.
Ai, meu Deus! Bela encrenca fui arrumar. A saudade é que é bela.
Um abraço apertado atuando sentimentos. Continuo um cafajeste e finjo satisfação. Tomara que ela não perceba minha decepção. Será que olhei demais para as rugas e para as gordurinhas? Mas o que estou falando? A mulher deve pesar um infinito de saudades, pois só essa quantidade de saudades poderia justificar que eu a procurasse, telefonasse e pedisse que ela viesse me ver.
A tarde se foi com cafés e recordações. A noite vem me salvar com os bocejos que causa em minha não mais pequenina. Fechei a cortina para que as estrelas não pudessem ser motivos para mais recordações, aquelas que nos remeteriam a momentos que ela levaria para o romance, e eu, para o desespero. Cheguei a pensar no risco para minha cama. Uma cama feita em linha de produção. Sabem como é: pés fracos, prestações baixas. Mas não serei abusivamente deselegante. Já basta o fato de que não irei me insinuar a dormir com ela.
Ai, ai, ai, meu Deus! Magnífica encrenca fui arrumar.
Não sei dizer em que momento o silêncio entrou em nossa conversa, o fato é que ele tomou tudo, dentro e fora de meu apartamento. Um carro passa ao longe, um cachorro late lá embaixo, e isso é tudo. Aqui dentro, a não mais pequenina dorme recostada no sofá. Ainda bem que não ronca. Estranho. Desse tamanho e não ronca?
Abro uma fresta da cortina o olho lá para fora, para o céu. As estrelas são as mesmas da minha infância, só que aqui em menor quantidade. Olho para elas, e olho e olho e olho, até que meus olhos começam a arder, e me dou conta de minha economia em piscá-los. Sinto aquela invasão dolorida que os fazem escorrer. Não, não são apenas as lágrimas, são mesmo os meus olhos a escorrer como se fossem ao chão para que eu visse onde eu merecia viver. No chão, onde se pisa. Esse é o meu tamanho. E a pequenina é gigantesca, não pelo que vejo, mas pelo que é. Meu sítio, minha infância, meu número preferido em uma agenda, meu despertar… minha estrela. Me dou conta de que a saudade que me torturava e entristecia não existe mais. A cidade brilhosa não me ofende mais com suas silhuetas acompanhadas em janelas iluminadas e distantes. No meio dessa gente toda, no meio de todo o concreto que nos esconde, eu sou o dono de uma estrela.
Repouso minha mão ternamente sobre o rosto da pequenina. Ela abre os olhos meio envergonhada por dormir, mas me segue até a janela, de onde estendo meu dedo criador e lhe mostro o mundo que, em um tempo distante, ela havia criado. Nossa estrela está lá, na ponta do meu dedo. A pequenina sorri. Que sorriso lindo! Ainda bem que a cama está na garantia. Só lamento pelos vizinhos de baixo.
Pequenina dorme, sua carne sobre meu peito apertado. Meus olhos também estão pesados. Lá vou eu ao meu sono esquecido.
Naquela noite sonhei que eu era pequeno, e quando eu era pequeno eu era enorme.
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Alessandro Thomé é autor dos romances ATÉ O FIM DO DIA (Editora Alley) e A CASA ILUMINADA (Benvirá), obra finalista do Prêmio Benvirá de Literatura em 2011.