Encerramos a semana com “Surdos”, conto de Ronaldo Wrobel escrito para a áudio série “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, e publicado pela primeira vez em texto. A narrativa curta bem humorada conta a história de uma avó que recebe os três filhos e nove netos para passar a quarentena em seu sítio.
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Surdos
Ronaldo Wrobel
Dona Rebeca atendeu o telefone assim que a televisão falou em quarentena. Interurbano do Rio.
– Fale mais alto, Angela! Hã? Está bem, pode mandar as crianças!
Gustavo ligou em seguida.
– Claro que sim, meu filho! Vou arrumar um quarto para os gêmeos! Você está bem? Alô?!
Mais rico dos três, o caçula foi avisando que ia mandar o motorista fazer compras no atacadão da estrada. Nove crianças no total. Havia espaço de sobra no sítio, mas os netos deveriam entender que vovó estava idosa e os empregados também. Nada de brigas e confusões, nem pensar em mergulhar na correnteza, escalar montanha, andar no frio sem agasalho!
Dona Rebeca não arredava o pé da roça adorada. Tinha quase noventa, mas era mais esperta que muito broto. Brincalhona, intuitiva, mente invejável. Religião, política, negócios, tratava de tudo. Nas tragédias, consolava os mais jovens. Já enterrara o marido, amigos e parentes, sempre com os olhos secos e a alma lavada: “Deus planta, Deus colhe”.
A primeira semana de quarentena no sítio transcorreu sem incidentes. Os nove netos compreenderam que o mundo estava doente e souberam se comportar. Todos se entrosaram pacificamente, à exceção de Carlinhos.
Certo dia almoçavam:
– Carlinhos, querido, passe o sal para a vovó.
– Não sou o Carlinhos – resmungou um pirralho. – Sou o Jorge.
No dia seguinte, Dona Rebeca se indignou com o mais velho, que já beirava a adolescência:
– Povos mataram e morreram pelo direito de eleger seus líderes, e você me vem com essa de votar nulo, Carlinhos?!
– Sou o Mateus, vovó. Carlinhos tem dez anos e é surdo-mudo. Não se conversa com ele.
– Surdo, mudo? – estranhou. – Desde quando?
– Desde sempre.
– Tadinho – suspirou, decidida a aprender a língua dos surdos. – Vai ser bom porque já não escuto direito.
Na semana seguinte a situação se agravou:
– Aumenta a televisão, Carlinhos.
– Sou o Felipe, vovó! E a televisão já está no máximo!
O declínio da matriarca preocupava filhos e netos, exceto Carlinhos. O menino conversava animadamente com a avó, movendo dedos, mãos e braços com expressões faciais que divertiam os primos.
Dona Rebeca logo dominou a linguagem de sinais, dedicada àquele cuja importância aumentava à medida que a audição dela diminuía.
– Diga à vovó que o jantar está servido! Pergunte à vovó se podemos brincar no porão! Avise à vovó que mamãe ligou e está bem!
Carlinhos, que lia lábios, convertia mensagens em mímicas eloquentes.
Quando a quarentena acabou, os adultos subiram a serra e o casal de empregados até chorou de emoção: a família toda reunida pela primeira vez em anos! Filhos, noras, genro, netos! Dona Rebeca estava tão feliz que fez questão de temperar os assados, mas já não escutava mais nada. Durante o almoço:
– Carlinhos, querido, passe o…
– Sou o Jorge, vovó! Jorge! Entendeu?! – e debochou da língua dos sinais com gestos grotescos.
– Respeite o Carlinhos! – repreendeu o pai.
Mais tarde:
– Carlinhos, pegue meus remédios naquela gaveta.
– Sou a Vanessa, vovó! Agora deu para confundir mulher com homem, é?!
Àquela noite a família assou legumes na lareira, mas Dona Rebeca só prestava atenção no “surdinho”, bracejando tanto que ngela teve de lhe emprestar um desodorante enquanto discutia com os irmãos a contratação de acompanhantes para inválidos, sem descartar a internação num asilo. Foi Gustavo quem propôs a venda do sítio. O pragmático caçula se lembrou de um bom corretor de imóveis. ngela preferia resolver tudo antes do inevitável, desgostosa com os trâmites do inventário do sogro. Podiam conversar abertamente porque Dona Rebeca não mostrava reação. Sua audição estava zerada e a voz era um fiapo cambaleante a caminho da mudez.
Na manhã seguinte, hora da despedida. Beijos e abraços, carros ligados e fumacentos. De repente, em alto e bom som:
– Gustavo, verifique o motor de sua picape! Está batendo biela.
Todos se entreolharam até reconhecer a voz da matriarca. Horror geral. A filha mais velha estava pálida e boquiaberta.
– Que cara é essa, ngela?! Nunca ouviu sua mãe falar?! E trate de fazer uma dieta porque você engordou na quarentena.
Ninguém conseguiu se mexer. A matriarca se aproximou de uma das noras:
– Assuma logo os cabelos brancos, Regina. Aquela tintura já estava ridícula. E trate de cuidar dessas pontas quebradiças.
Perplexidade.
– Ricardo, cuidado com os gêmeos. Beberam uísque escondido. ngela, sua filha está planejando uma tatuagem na bunda. Gustavo, você também engordou. Como estão suas taxas de gordura no fígado?
Gustavo gaguejou:
– Então a senhora pode… falar?!
– E ouvir também – emendou a velha.
Ninguém entendeu lhufas. Até os empregados estavam chocados. Dona Rebeca ajustou a gola de Jorge, mandou Artur amarrar os sapatos e recomendou a todos cuidado na estrada. Filhos, netos, genro, noras não se moviam: quinze estátuas incrédulas. Depois de limpar os pés no capacho, velha virou-se para trás com um sorriso astuto:
– A surdez é feito o amor: só funciona se for recíproca.
Piscou para Carlinhos e bateu a porta.