Filho de Autran Dourado e curador de sua obra, o advogado Lúcio Autran é também um grande poeta — “Soda Cáustica Soda” (Patuá), “Fragmentos de um Exílio Voluntário” (Bookess), entre outros — e leitor compulsivo, profundo conhecedor de literatura. Nesta Conversa Com (A) Gente, ele fala sobre a responsabilidade de manter viva a obra do pai, a dificuldade de o fazer sob um governo que tem o sucateio da cultura como política de Estado — “É como assar ‘biscoitos finos’, para usar a expressão de Oswald de Andrade, no forno de uma pocilga” — e sobre os sinais de que tem conseguido algum sucesso em sua missão, apesar das adversidades. Sobre o “Velho Autran”, como Lúcio chamava o escritor, o tom é sempre de imensa admiração e vontade de trazer novamente à luz uma obra magistral: “Não perco a esperança, aliás, nestes tempos de estupidez, conservar o otimismo e a sensibilidade, e a esperança delas decorrente, é um ato de resistência, então adquiro forças para trazer novamente à ribalta um romancista sofisticado, cuja literatura parece estar sendo cultivada às escondidas”. Ele discorre também sobre sua própria obra poética, suas referências literárias, as leituras que tem feito e as que recomenda; comenta o ambiente da criação artística no Brasil; e reflete sobre sua veemência nas mídias sociais contra Jair Bolsonaro: não pretende arregimentar quem quer seja, muito menos liderar, é mesmo uma forma de desopilar o fígado . Com a linda precisão vocabular que caracteriza tudo o que diz, define: “Não sinto ódio, o deixo para ele, que o cultiva com tanto denodo, talvez ‘asco’ seja palavra mais adequada, e algum desespero por tamanha intranquilidade.”
VB&M: Como você encara o trabalho, na condição de herdeiro, de curador de uma obra como a de Autran Dourado? Quais são as sutilezas dessa missão?
LA: Sinto um imenso orgulho dessa escolha por meu pai, lavrada no seu testamento. Ao mesmo tempo, uma pesada responsabilidade, confesso que tenho sentido alguma perplexidade e frustração, por ter que desempenhá-la nestes tempos sombrios, quando a boçalidade foi alçada ao Poder. Produzir cultura no Brasil de hoje? Nunca foi fácil, mas conseguiu piorar. E muito.
Ainda mais se tratando da obra como a do escritor Autran Dourado. É como assar “biscoitos finos”, para usar a expressão de Oswald de Andrade, no forno de uma pocilga. Como publicar, divulgar e fazer ler num país de analfabetos, aí incluídos alguns alfabetizados? Como esperar que esse desgoverno adquira livros para distribuir nas escolas, ou, no limite, fomentar a leitura e a cultura de algum modo? Ora, se ele conhecesse da sua limitada obtusidade, daria o mesmo grito necrófilo das falanges franquistas ante Unamuno: “¡muera la inteligencia! ¡viva la muerte!”
Difícil seu legado, “Velho Autran”, como eu o chamava, mas não perco a esperança, aliás, nestes tempos de estupidez, conservar o otimismo e a sensibilidade, e a esperança delas decorrente, é um ato de resistência, então adquiro forças para trazer novamente à ribalta um romancista sofisticado, cuja literatura parece estar sendo cultivada às escondidas.
VB&M: SINOS DA AGONIA foi contratado pela Harper Collins. Como você situa esse romance na obra de Autran Dourado?
LA: Li esse livro ainda muito jovem, naquela idade em que não sabemos saborear devidamente o que lemos, principalmente num menino talvez precocemente feito leitor compulsivo. Que vontade tenho de reler tantos autores! Mas infelizmente sei que não terei tempo para isso. Após a assinatura do contrato, resolvi relê-lo, como foi gratificante perceber que era uma leitura praticamente inédita.
Inicialmente me espantou um pouco a escolha da editora, pois é de seus romances mais sofisticados, uma recriação das tragédias “Hipólito”, de Eurípedes, e “Fedra”, de Racine, tendo como cenário a Vila Rica do século VXIII, tudo iluminado pelo universo mítico do autor. Entretanto, repensei e concluí que foi, sim, uma escolha acertada, pois nesse livro se vê com muita clareza, clareza esta que se revela em toda obra, notadamente em A ÓPERA DOS MORTOS, que Autran Dourado é leitura que, como toda (boa) literatura, pode ser feita em níveis distintos, que satisfaz tanto o leitor médio quanto o estudioso de sua vasta obra. O primeiro, para usarmos uma metáfora própria ao tempo histórico do livro, se aterá ao enredo, bateando ouro de aluvião nos rios de Autran, o outro tentará garimpar ouro de mina, que demanda um mergulho mais profundo na obra. E também os SINOS DA AGONIA permite todos os níveis de leitura.
Aliás, meu pai falava, muito gostosamente, pois nada tinha de sisudo, que “o enredo é a forma que uso para distrair o leitor e lhe bater a carteira”, e era com a “carteira do leitor” no bolso, sem que este percebesse, que ele podia desenvolver com cuidado sua carpintaria, como gostava de dizer (seu livro sobre o fazer literário, à época pouco entendido, chama-se exatamente MATÉRIA DE CARPINTARIA). Como todas as Minas Gerais, sua obra traz o gene do Barroco, não fosse ele um escritor apaixonado por esse período, como eu mesmo o sou.
Finalmente, uma curiosidade: há, nesse livro, uma epígrafe com a qual a censura implicou, naqueles anos tenebrosos dos quais alguns inacreditavelmente têm saudade, e que nenhum editor teve coragem de publicar, pelo menos até o fim dos anos de chumbo. Creio que era uma do Capistrano de Abreu, “este padeceu no suplício em efígie; os outros subiram no patíbulo”.
A estupidez, vê-se, era a tônica. Como continua sendo.
VB&M: Tem havido alguns sinais de um renovado interesse na obra de Autran. Quais movimentos você percebe nesse sentido, apesar de ela não estar presente nas livrarias?
LA: Sim! E tem sido um alento essa constatação. Tenho visto nas redes sociais e blogs interesse crescente em sua obra. Tendo o seu acervo e biblioteca (tão saborosa… saudades) ido para a UFMG, onde foram feitas várias teses e estudos de sua obra, isso facilitou e muito o acesso ao que ele chamava “genética do texto”.
A dificuldade me parece ser como fazer isso saltar do efêmero das redes, onde muitas vezes as ideias parecem desesperadamente desaparecer ao pé da tela do computador ou do celular. É a tarefa para qual tenho tentado dirigir meus esforços, como, por exemplo, nesta entrevista.
Por falar em teses, tenho tido notícias de algumas que novamente estão sendo apresentadas sobre sua literatura, e isso me dá imensa alegria, pois esse é um leitor que ele cultivava com muito carinho.
VB&M: Quais são os poetas que vc percebe mais presentes no seu trabalho?
LA: Na minha formação tive, ainda jovem, admirações que obviamente se transformaram em influências, como, por exemplo, Drummond; a simplicidade de Bandeira; o universo mítico, embora sua fase mística não me comova tanto, de Murilo Mendes e a concisão de João Cabral, poetas que muito me ensinaram.
Guardo num ponto muito especial de meu afeto, o dia em que meu pai “furtou” um poema e um pretenso conto que eu menino de uns quatorze anos havia escrito. Pude então constatar (e aprender) o cuidado que ele tinha na escolha de cada palavra, me dizendo: “filho, evite vozerio, melhor vozeio…”. E muito sério me advertiu: “não escreva, é atividade muito frustrante num país sem leitores, como o nosso. Não escreva”.
Desmoronei, fiquei arrasado. Como, meu pai dizendo para eu desistir? Só poderia ser isso! No dia seguinte encontrei sobre a minha mesa o livro “Aspectos do Romance”, do Forster, com uma dedicatória temperada pela secura das Minas: “de seu pai e amigo, Autran”, livro que um dia algum infeliz me pediu emprestado e nunca mais devolveu. Arderá por toda a Eternidade no Nono Círculo do Inferno.
Também me presenteou com um livro de entrevistas com vários escritores e filósofos franceses, como Barthes, Lacoutre e outros, chamado “Escrever… Para quê? Para quem?”, com o ferino comentário, “cuidado, se um escritor brasileiro se fizer essa pergunta ele se suicidará. E, estendendo a mão, pediu que eu lesse o poema “Procura da Poesia”, do Drummond, dizendo, leia e releia este poema, de fato fenomenal. Nele, de nosso poeta maior, ensina: “Não faça versos sobre acontecimentos”, confesso que tenho tido dificuldades com os acontecimentos lidos e ouvidos cotidianamente. Aliás, ele próprio, Drummond, não seguiu à risca seu conselho.
Dos estrangeiros admirava, e continuo admirando, Guillén (o Jorge, o Nicolás ouço mal), autor de um dos versos mais sensíveis da poesia universal, ao menos a que conheço em minhas limitações: “Así me arroja y me ata / Lo tan soleadamente / Despejado a este retiro / Fresquíssimo que respiro / Com mi Adán más inocente”. “Meu Adão mais inocente” é de dar inveja ao mais vaidoso dos poetas.
Impossível alguém que se pretende poeta desconhecer Baudelaire e os clássicos, como Virgílio, Petrarca, Homero, e o maior de todos: Dante. É uma delícia ler a “Eneida”, de Virgílio; “A Divina Comédia”, do Dante; e o “Fausto”, de Goethe, e tentar achar os elos que ligam esses três grandes poemas.
Depois de maduro, tento me desvencilhar de influências, tenho me dedicado a buscar uma linguagem absolutamente pessoal, avesso que sou a modismos, solitário por vocação e gosto, e talvez exatamente aí residam as minhas dificuldades. Claro que de todas essas leituras sempre ficará algum vestígio, algumas pegadas na alma que talvez, numa prospecção, um dia alguém venha encontrar alguma influência. Não eu.
É a minha hoje já escassa esperança.
VB&M: O que o motiva a escrever? Onde buscar inspiração para a poesia no Brasil bolsonarista?
LA: “Inspiração” é palavra perigosa, que seja, mas, Drummond, como, com esse proto-homem no poder e seus proto-hominídeos, como manter-me longe dos acontecimentos? Ando tomado pelo medo, mas reajo a ele com minha “ira santa”, como dizia eu ter meu tão precocemente falecido amigo e poeta Pedro Pellegrino. É difícil não olhar o papel em branco e não ver refletido aquele sorriso de lagarto sórdido.
O perigo e, principalmente, o desafio – e isso me fascina, a arte que se equilibra sobre tênues e perigosos limites – é deixar-me levar pelo ingênuo panfleto, ou uma detestável poesia utilitária, pois tenho horror de quem pretende que a arte tenha uma “utilidade”, senão aquela que ela própria tem, desde os homens das cavernas: a representação do triste destino de ter nascido ser humano. Daí que, embora poetando o que tem que ser escrito, dadas as infelizes e gassetianas circunstâncias sob as quais padecemos, cada vez mais tento o cuidado estético, pois assim como o enredo era para meu pai, o tema, na poesia, é a moldura, o suporte para que, dentro dela, possa trabalhar no que todo poeta tem a fazer: a poesia.
VB&M: Como você vê o ambiente de criação poética no Brasil de hoje?
LA: Apesar de tudo, tirando alguma perigosa tendência ao utilitarismo irritante e o que chamo de “A Rainha Vitória de Duas Cabeças” (tenho um poema com este título), um moralismo travestido, que, embora no polo oposto, não se difere muito do conservadorismo de um reacionário larvar, apesar da vocação à superfície das redes sociais, paradoxalmente tenho encontrado exatamente nas redes poetas de primeira linha, que têm dado um inesperado vigor à poesia brasileira.
Há um interessante fenômeno na atual poesia brasileira. Se os poetas brasileiros sempre foram marginalizados, um país que tem Gregório de Matos, Tomás António Gonzaga,Drummond, Bandeira, Cabral (que disse numa de suas últimas entrevistas ser “a poesia é o laboratório da língua”) recusar-se a ler poesia? Pois é… Mas essas mesmas redes sociais, constantemente acusadas de dar voz ao imbecil – e nada mais verdadeiro, basta olhar pela janela – proporcionou a troca entre leitores e escritores, fomentando entre estes a mútua leitura, que desaguou, felizmente, no surgimento de inúmeras pequenas editoras, boa parte delas saudavelmente conduzidas também por autores, uma rede de apoio aos poetas, como a Patuá, por onde publiquei meu último livro, SODA CÁUSTICA SODA (à venda no “site da editora”, desculpem o comercial), a Texto Território e tantas outras que trazem das margens a bela notícia que, apesar dos pesares, tem-se feito no Brasil uma poesia de qualidade.
VB&M: Sua página tem veementes críticas a Bolsonaro. Você faz isso por um impulso de raiva, desespero, ou pensa que está conseguindo alcançar algum propósito político de conscientização das pessoas para o que está havendo?
LA: É tudo isso que você falou e mais um pouco, digamos que seja, “o conjunto da obra” o que me move. Contudo, não sinto ódio, o deixo para ele, que o cultiva com tanto denodo, talvez “asco” seja palavra mais adequada, e algum desespero por tamanha intranquilidade. Não é possível um país viver assim?! Claro que ele tem seguidores, mas me impressiona como uma só pessoa pode tornar todo um país irrespirável.
Não pretendo arregimentar ninguém, muito menos liderar nada, esconjuro, não nutro ilusões de convencer os já convencidos, é apenas uma forma de desopilar o fígado, que anda muito carregado desse incessante asco, um gosto amargo de bílis. Pelo menos enquanto podemos, pois em breve talvez tenhamos que nos calar, mas falo para aqueles que pensam como eu, aliás, os fatídicos algoritmos nem permitem que seja diferente.
VB&M: Qual foi o último livro que você leu?
LA: Tenho por hábito ler três ou quatro livros concomitantemente, um romance, um de poesia e outro, alternando filosofia, História ou ensaios sobre literatura ou arte. Recentemente preenchi uma vergonhosa lacuna em minha formação literária e terminei, absolutamente encantado, os sete volumes de Proust, encantamento dividido pelo cachorro do Gabriel, meu filho, que resolveu literalmente, tão entusiasmado estava, devorar umas páginas do último volume, por sorte já ultrapassadas. O nome do doce cãozinho? Chaos, Magnum Chaos, o deus grego primordial, acho que deveria ter sido Zen.
Sei que vou morrer sem ter lido grande parte do que gostaria, e na Eternidade, na qual não creio, não deve haver bibliotecas, assim, tenho, a exemplo do Chaos, corrido para devorar livros, antes que o Tempo me leve, e preencher algumas imperdoáveis lacunas. No momento estou lendo, e me deliciando, com “Guerra e Paz”, do Tolstói, imprescindível.
Paralelamente releio, com tradução de Carlos Alberto Nunes, o também maravilhoso “Eneida”, de Virgílio, numa bela edição completa e bilíngue, pela Editora 34, que há muito li numa edição horrorosa.
Tempero essas leituras com os dois volumes de “História”, de Heródoto. Além de historiador, ele tinha uma prosa deliciosa e um tanto delirante. Inacreditavelmente isso é motivo de crítica por parte do prefaciador na edição que leio, que buscou ali um historicismo que só veio ocorrer no século XVIII. E o que acabo de dizer não é fruto da minha pretensiosa ignorância, mas do ensaio “Vico e o Historicismo Estético”, de Erich Auerbach.
VB&M: O que você está recomendando para os amigos?
LA: Esse é um juízo que apenas cada um pode fazer. De toda sorte, para os interessados em literatura, recomendo o livro “Ensaios de Literatura Ocidental”, do já citado Auerbach. Seu ensaio sobre Dante é primoroso. No mais, bebam de Dante, embriaguem-se de Homero e de todos os clássicos. Mergulhem na tragédia grega, não têm tempo? Se atenham a Antígona, de Sófocles. Ali, encontrarão a anteposição entre o direito natural, essencialmente feminino, matriarcal, representado por Antígona; e o direito positivo, masculino, patriarcal, encarnado em Creonte.
Dos vivos… Este é um terreno perigosíssimo, pois sempre esquecerei alguém, mas recomendo a leitura da poesia e da prosa de meu não por acaso prefaciador, André Caramuru Aubert; a prosa de Theo Alves, em “Porque Não Enterramos o Cão”; ambos publicados pela Patuá. Além de um poeta por quem tenho especial afeição e admiração, Oswaldo Martins. Seu livro “Manto”, onde o poeta reencarna o genial Arthur Bispo do Rosário, é leitura fundamental. Embora faça uma poesia um tanto distinta da minha, gosto da sua preocupação com o apuro estético, e a coragem de reinventar a língua e ressuscitar palavras em desuso, coisa que também venho tentando fazer no livro que escrevo “PESSOAS E PERSONAGEMS: ILUSIONISMOS”. Tenho, no meu blog resenhas sobre os três.
Falando no meu trabalho, paralelamente a este “Pessoas”, estou dando os acabamentos finais no A DEMÊNCIA DO TEMPO: POESIA PARA NÃO ENLOUQUECER – UM DIÁRIO POÉTICO DA QUARENTENA SOB O SIGNO DE UM PODER DEMENTE. Quando serão publicados? Não sei, não tenho pressa, nem a mim mesmo tenho que dar satisfações, somente à minha poesia. Por vezes trabalho um poema por vários meses, ou anos, como já ocorreu. Não sei qual poeta espanhol – acho que foi Guillén, mas posso estar enganado – que disse “um poema nunca termina, é abandonado”.
Finalmente, concluindo minhas recomendações, assim que conseguir a hercúlea tarefa de reintroduzir a obra de meu pai no lugar de destaque que merece, recomendo vivamente que leiam muito e repetidas vezes Autran Dourado, tenho certeza de que gostarão.