A LINGUAGEM PURA DE NARA

Retomamos a coluna Narrativas, depois de finalmente superar um bug no site da agência, com um trecho tão breve quanto poderoso do novo romance de Nara Vidal, PURO, que já saiu do forninho da autora contratado no Brasil e em Portugal por excelentes editoras, aqui pela Todavia, que publicou EVA, e lá pela Relógio D’Água. Pudera, Nara é uma das mais aclamadas escritoras brasileiras da última década, que já em sua estreia mostrou a que veio com SORTE (Moinhos), um romance pungente sobre miséria e imigração em que a crueza da realidade é recriada numa narrativa elegante e liricamente cruel, como sublinhou Ronaldo Cagiano, d’O Estado de Minas. SORTE ficou em terceiro lugar no Prêmio Oceanos em 2019. Seu segundo romance, EVA (Todavia), trata de loucura, perda, do controle e da violência que permeiam as relações entre mães e filhos e entre amantes. PURO trata de preconceitos e hipocrisias, das profundezas da psique e das relações humanas. Magistral, como tudo que Nara escreve.

*

Lázaro grita:

Lava a mão, Íris, esfrega. Lava direito pra ver se o preto sai.

Íris pensa:

Menino mentiroso. Lázaro fala que veio da Alemanha, mas a velha Alpínia diz que o moleque não é muito confiável e sua origem é mais local e precisa: Três Vendas, zona rural de Santa Graça. A mãe dele, que ninguém conheceu, largou a criança na rua. Uma vez, Dália e Lobélia passavam no povoado para comprar marmelo da fazenda Bela Vista, se depararam com um embrulho de fiapos dentro de um balaio. Era o menino muito branco. Olharam para os lados. O ar seguro. Seco. Ninguém. Tarde firme. Ninguém em lugar nenhum debaixo do calor intenso e alaranjado. Sentaram-se na soleira da capela e esperaram quase a tarde toda que alguém chamasse pelo menino. Foi assim que nasceu o Lázaro. Nasceu de ninguém querer.

Era branco feito nuvem e era raro achar criança pura assim sem pai e mãe. Sobrava era pretinho sem família. Isso tinha aos montes. Andavam em bandos pedindo resto de comida e água nas casas das famílias ricas de Santa Graça. Foi assim que eu cresci, foi assim que cresceu o monte de menino do Mata Cavalo e assim teria crescido o meu Joaquim, se tivesse vingado.

Numa segunda-feira, depois do menino Ícaro voltar da escola, ele se pendurou na varanda do quarto da mãe dele e viu passar uns quatro, cinco meninos que pararam no casarão. Gente minha: roupas ajambradas em tom alaranjado de terra batida. Pediam um copo d’água. Aqui na casa do Ícaro eu não posso abrir a porta pra eles, a avó do Ícaro não me deixa. Quando me veem da grade, gritam meu nome para buscar pão velho. Se eu for, dona Rosa me manda embora. O Ícaro e os pretinhos não podem nem conversar. Dona Rosa e a mãe do menino, dona Ondina, ensinaram que os negrinhos entravam na casa dos outros para roubar. Eram diferentes dos ciganos que entravam para ler a nossa mão e nos contar sobre o futuro; roubavam e a gente nem se dava conta. Os meninos de cor, preciso fosse, batiam nos outros e levavam as coisas compradas com tanto sacrifício. A dona Rosa dizia também que eram preguiçosos porque se eles que eram brancos estudavam e trabalhavam para conseguir os confortos da vida, por que os pretos não faziam o mesmo?

Tenho saúde e agradeço ao Deus Pai a cada noite. Tenho também vontade de matar a dona Rosa. Padre Arcanjo me ensinou a rezar para Deus e Jesus. É um santo homem; me ensinou também a não me entristecer por servir os outros. Tudo é vontade de Deus e Ele sabe o que faz. Pertence a mim o reino dos céus. Padre Arcanjo me lembrava da vida boa que eu tinha. Minhas avós de certo foram escravas e, graças a Deus, tudo melhorou muito.

Saí da janela para que os meninos não me vissem e espiei quando bateram palma e tocaram a campainha das três bruxas. Ícaro lá, de olho neles. Coitado, queria era brincar.

Lobélia abriu a porta. Fez sinal para esperarem na varanda e vi quando chamou alguém de casa. Dália foi até a varanda, deu batidinhas leves nas cabeças dos meninos que abriram a boca e mostraram os dentes, mas não era sorriso.  Alpínia chegou com água e biscoito e uma toalha que Dália usou para limpar as mãos depois de encostar nas crianças. Ela mandou que voltassem no dia seguinte para comerem pão, mesmo horário. Os meninos desceram os degraus da varanda que dava para a rua. Pareciam alegres. As mãos sujas de terra agarravam os caramelos pretos que ganharam, aqueles com gosto de queimado, que grudam nos dentes. Um dos pretinhos achou o Ícaro. Ele sorriu seus dentes todos, os mesmos que tinha mostrado há pouco às donas do casarão. Ícaro teve medo, não do menino, mas da avó ver ele sorrir pro moleque. Ele se escondeu atrás da cortina. Uma pontada bem perto da orelha direita. Olhei para o chão. Procurei o neguinho. Ele sorriu de novo, abanou a mão e foi embora. Apanhei do sinteco encerado o caramelo que ele jogou pro Ícaro.

Terça, quarta e quinta a mesma coisa se repetiu. Os meninos do Mata Cavalo batiam na porta do casarão, Alpínia ou Lobélia davam pão e água. Dália dava leves batidas nas cabeças deles, enchia-lhes as mãos sujas de caramelos e eles iam embora. O mesmo menino que jogou a bala para Ícaro, jogou várias outras até chegar sexta-feira, que foi quando eu vi pela última vez o menino da Ester.