A CURA PARA O OBSCURANTISMO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Por Pedro Alencastro

Quando o médico inglês Edward Jenner inventou de imunizar seres humanos contra a varíola, arranhando o braço de seus pacientes e introduzindo no corte pus das feridas de mulheres que ordenhavam vacas, muitos ficaram chocados. Jenner desenvolveu este inusitado experimento de inoculação (bastante praticado na China, na Índia e na Ásia Ocidental), depois que uma ordenhadora de Gloucester lhe passou uma pista valiosa: “Oh, não senhor, eu não posso apanhar varíola porque, veja bem, já tive varíola bovina”. Jenner ouviu aquela fala despretensiosa, pensou a respeito e a partir daí desenvolveu a ideia da vacina.

O primeiro paciente que Jenner vacinou foi um menino de oito anos. Jenner havia coletado pus de feridas infectadas com varíola bovina das mãos da filha de um fazendeiro e, no dia 14 de maio de 1796, fez duas ranhuras no braço da criança, introduzindo ali o fluido viscoso. Jenner passou anos pesquisando o tema antes de colocar o procedimento em prática, e embora a imunização tenha sido um sucesso, logo surgiram rumores de que a vacina tinha efeitos colaterais terríveis. Os boatos diziam que os pacientes inoculados por Jenner se transfiguravam em vacas – incluindo chifres, patas, rabo e tudo mais, conforme detalhado em uma grotesca ilustração publicada em 1802.

A imagem, que aparece no Guia de batalha contra os germes de Wayne Biddle, é um clássico exemplo de campanha para se propagar mentiras sobre questões de saúde. Conforme relata Steven Johnson em O mapa fantasma, a disseminação de notícias fantasiosas se intensificaria na Era Vitoriana, em um período posterior à ascensão dos meios de comunicação de massa e anterior ao surgimento da ciência médica especializada. Neste intervalo, remédios milagrosos e diagnósticos sem qualquer fundamentação científica passaram a ganhar as páginas de anúncios em jornais, conquistando assim um fórum muito mais amplo do que através do mero boca a boca.

Em agosto de 1854, por exemplo, um leitor que abrisse os classificados do Times encontraria inúmeras promessas de cura para uma epidemia de cólera em Londres: purificadores de ar, coquetel de óleo de linhaça, purgante com óleo de rícino… Mas para o médico anestesista John Snow (não confundir com o personagem de Game of Thrones) a solução poderia começar pela desativação de uma bomba de água na Broad Street, no distrito de Soho, epicentro da mortandade. Segundo a pesquisa de Snow (que resultou no mapa que intitula o livro de Steven Johnson), os encanamentos que levavam água para a bomba da Broad Street teriam se misturado aos detritos de uma ou mais casas próximas, incluindo aí o vômito e a diarreia das vítimas da cólera.

Snow percebeu que a doença era transmitida pela água poluída, e não pelo ar, como muitos acreditavam (aliás, desta ideia equivocada de que doenças epidêmicas se espalham pelo ar deriva a palavra malária, do italiano “ar ruim”). No início do surto de cólera, alguns chegaram a desconfiar que os esgotos de Londres estivessem na origem do problema. Mas pelos motivos errados. Os mais dramáticos alegavam que as escavações feitas durante a instalação dos canos haviam perturbado os cadáveres da Grande Peste de 1665, liberando assim miasma infeccioso no ar londrino. Noutra peste, a do século XIV, a imaginação popular foi ainda mais longe. Como nos conta Richard Gordon em A assustadora história da medicina, a suspeita era de que os judeus tivessem envenenado poços de água para matar inocentes.

A semelhança entre aquelas acusações medievais e as recentes denúncias (de que chineses criaram o Sars-CoV-2 em laboratório para iniciar uma pandemia e se beneficiarem economicamente) não é mera coincidência. Hoje, tudo isso nos soa lamentavelmente familiar, porque escancara velhos hábitos de quem se recusa a aprender com os erros do passado. Teorias conspiratórias, campanhas contra vacinação, anúncios de remédios milagrosos, desinformação e negacionismo. Embora ainda não exista uma cura da Covid-19, para estes outros males nós já temos o remédio: fontes confiáveis, conhecimento histórico e valorização da ciência.

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Pedro Alencastro é jornalista e autor de QUEM INVENTOU O PONTO DE INTERROGAÇÃO, ainda inédito.